De Vila Viçosa para além de uma vida curta de 36 anos. Estava para além do seu tempo. Segundo Jorge de Sena, ela foi a expressão do feminino na poesia portuguesa. Admirava Júlio Dantas, Camões, Guerra Junqueiro e José Duro, para lá de outros. Emocionava-se até às lágrimas com António Nobre, a quem dedicou um soneto.
Mulher de vida dolorida e atribulada, de saúde precária, terá sucumbido a dois frascos de Veronal, medicamento crónico que apaziguava a dor e apelava ao sono. Da certidão de óbito, assinada por Manuel Alves de Sousa, carpinteiro, consta que expirou devido a um edema pulmonar, às 22 horas do dia 7 de Dezembro, embora tivesse acabado às duas horas da madrugada de oito, de 1930.
O dia do aniversário de Florbela é o dia marcado para o funeral. Matosinhos, localidade onde vivia com o médico Mário Lage, seu último marido, com quem casara catolicamente, é fustigada por um grande temporal, não sendo possível realizar o cortejo fúnebre. O corpo é depositado na capelinha contígua ao cemitério. A chave do esquifo é entregue a Guido Battelli, professor do curso de História da Literatura Italiana na Universidade de Coimbra, que mantém com Florbela correspondência entre 27 de Junho de 1930 até à morte da poetisa, que confessara a sua dificuldade em editar Charneca em Flor. Os jornais noticiaram. O seu nome apareceu projectado nas páginas da imprensa. Se a sua vida não fora conhecida como desejava, a sua partida foi dada a conhecer.
Em forma de testamento, Florbela deixou cartas e alguns postais de despedida a amigas e marido.
Junto ao mar repousa, numa vastidão só comparável ao Alentejo que a viu nascer e que transportou nas palavras em forma de vida. Quantos sonhos por concretizar! Quantas esperanças desfeitas! Quantas lágrimas enxutas em livros, remédio de males passados, consolo dos males dos outros e de si própria, refrigério de amores não conseguidos!
Quanta mágoa no Livro de Mágoas e Soror Saudade! Quanta censura e reprovação na intimidade de uma vida vivida, mostrada e compartilhada!
Nutrida na insatisfação, no narcisismo, transportando-se nas asas de Ícaro, deixou o rasto de um talento que ainda perdura. Teve admiradores, muitos, que se deleitam no seu imaginário e cantam a poesia para gáudio dos que procuram nas suas palavras o aconchego de um verso e o consolo de um poema. E ao falar-se de Florbela experimenta-se um halo de virtuosismo a que poucos chegaram. Não concretizou os seus sonhos, mas ajudou-nos a transformar, a melhorar e a amar a palavra. Com ela o soneto atingiu, nos tempos modernos, uma expressão que só havíamos encontrado em Antero de Quental. Na sua poesia a exaltação do querer ser mais e maior, a par da solidão e do sofrimento. Retiremos o que a nossa inteligência persegue e cumpramos o nosso caminho.
Não partiu incólume. Não foi esquecida. Deixou rasto. Deixou a marca da admiração e do respeito. Se o seu talento não é posto em causa, a sua vida de mulher à frente do seu tempo merece reparos por parte dos seus detractores. A sua obra multiplica-se. Os estudos em redor da sua pessoa e dos seus livros não param. Vão de Portugal ao Brasil. Admiradores muitos. Estudiosos outros tantos. Não ficou só Florbela, a quem dedicamos algumas linhas fazendo especial incidência no período após o seu desaparecimento do mundo dos vivos.
A 14 de Dezembro de 1930, poucos dias após o seu falecimento, Celestino David (1880-1952), um covilhanense, radicado na capital do Alto-Alentejo, fundador do grupo Pró-Évora em 1919, que nunca tinha falado com Florbela, mas que tinha seguido o seu trajecto de vida, movido por laços que o prendiam à sua admiração, lançou no Diário de Notícias a ideia de ser prestada uma homenagem nacional à poetisa, sugerindo que fosse erguido um monumento em sua memória na cidade de Évora.
Em 25 de Janeiro de 1931 é aberta uma subscrição, a nível nacional, para a construção de um busto que perpetuasse a memória da poetisa alentejana, que fizera de Évora cidade sua, onde habitara e frequentara o Liceu André Gouveia, como aluna interna.
António Ferro, que viria a dirigir o Secretariado da Propaganda Nacional, a convite de Salazar, como que respondendo à iniciativa de Celestino David, em artigo de 24 de Fevereiro de 1931, no Diário de Notícias, lamenta o esquecimento a que a poetisa tinha sido votada, lembra-lhe o talento e dá origem a uma Comissão dinamizadora que integra entre outros, Henrique Lopes de Mendonça, Cândida Aires, Bourbon e Menezes e Fernanda de Castro, mulher de António Ferro.
Graças a Guido Batttelli, sai Charneca em Flor, constituído por 56 sonetos, livro póstumo que alcança grande êxito editorial, que a poetisa não teve tempo de rever na totalidade. De autoria do professor italiano, é dado à estampa Juvenília, opúsculo dedicado à poetisa, contemplando comentários de carácter ensaístico, e cerca de 18 sonetos, alguns inéditos.
Máscaras do Destino e Dominó Preto saem, igualmente, em 1931, mostrando a poetisa num universo diferente, sendo a prosa a grande dominante.
O grupo Pró-Évora está firmemente apostado em levar por diante a homenagem à poetisa que tão bem dignificara as letras e a sua província. A subscrição vai engrossando a pecúnia. Apoios vão sendo recebidos de várias origens. O Secretariado da Propaganda Nacional e a Sociedade de Mármores de Vila Viçosa disponibilizam a matéria-prima, alegando não poder oferecer todo o mármore para o pedestal, mas somente metade. Diogo de Macedo (1889-1959) é encarregado de esculpir o busto que será colocado numa das praças da cidade, cabendo ao arquitecto Jorge Segurado, a construção do plinto e a projecção das linhas do monumento.
Concluído o busto em fins de Dezembro de 1934, é posto à disposição da Câmara Municipal, que o não levanta por falta de verba. Pagas as despesas pelo grupo Pró-Évora, foi colocado na arrecadação da Câmara, no Palácio de D. Manuel.
Embora os apoios solicitados no Diário de Notícias tivessem sido alcançados, é certo que por parte da edilidade foram muitos os obstáculos que inviabilizavam a instalação do monumento num local público da cidade.
Entre as vozes discordantes à legitimidade da instauração do busto, conta-se o Padre José Augusto Alegria (1917-2004) alegando que:
Uma estátua a uma mulher cuja obra reflecte uma posição perante a vida, diametralmente oposta à que está na própria base da Constituição do Estado Português, é praticar um acto de sabotagem, porque representa uma traição ao que se jurou defender.
José Fernando de Sousa (1855-1942) conhecido por Conselheiro Fernando de Sousa, fundador do jornal A Voz vituperava contra Florbela alegando razões várias que punham em causa a vida de Florbela. Autoridades civis e religiosas tudo fazem para inviabilizar o projecto já apoiado, nalguns dos principais jornais portugueses. Florbela de vida sofrida e vituperada continuava após a morte a ver-se esmagada pelos sectores mais radicais da sua terra, do seu Alentejo que tão bem divulgara.
Os membros da Comissão Administrativa Municipal de Évora presidida pelo Dr. António Gromicho mostravam-se contrários à consagração de Florbela, embora em 16 de Junho de 1836 tivessem deliberado autorizar a realização das obras de construção dos alicerces para o monumento no Passeio Público.
Nesse mesmo ano, em 2 de Julho, foi suspensa a autorização concedida para a construção dos alicerces, alegando ser necessário consultar a Junta Nacional de Educação acerca do merecimento da homenagem.
Em Lisboa, a homenagem não sendo vista com bons olhos, Vila Viçosa e Matosinhos pedem a Évora que lhes ceda o busto, o que é recusado pelo grupo Pró-Évora.
António Ferro, Alberto Serpa e o Padre Nuno Sanches, pároco de Matosinhos, aventam a hipótese de o busto ir para Matosinhos, tendo Diogo de Macedo sido da mesma opinião.
José Régio, a quem de Florbela Espanca afirmara ser a maior poetisa portuguesa de qualquer tempo e um dos grandes nomes da nossa poesia moderna manifesta-se nos jornais por várias ocasiões pelo facto do busto da poetisa ainda não estar colocado no espaço a que tinha direito, encontrando-se, entretanto, depositado no Museu Regional de Évora, por despacho do Ministro da Educação, Dr. Carneiro Pacheco.
Face a esta demora, a Comissão de Turismo de Matosinhos disponibiliza fundos para a instalação do busto na sua cidade. Nos jornais são muitos os comentários, as críticas, as censuras à obstinação da Câmara de Évora insensível ao valor da artista.
Guido Battelli, a quem Florbela havia ficado ligado, era possuidor de algum espólio da poetisa, resultante da sua troca de correspondência e da amizade estabelecida, cimentada pelas férias de vinte dias passadas em Matosinhos, a convite de Florbela. Homem de cultura, mandou entregar ao Director da Biblioteca Pública de Évora, fundada por Frei Manuel do Cenáculo, o espólio de Florbela, constituído por três retratos, dezoito sonetos autógrafos e 24 cartas que lhe eram dirigidas, recomendando que a abertura não se fizesse antes de dez anos, i.e., nunca antes de 8 de Dezembro de 1941. Junto iam duas pinturas e aguarelas, a primeira, à mão, de Apeles Espanca, irmão de Florbela, falecido em 6 de Junho de 1927, em desastre de hidroavião, no Tejo, não tendo o corpo aparecido. Destinava-se a pintura a servir de capa ao livro Soror Saudade. A outra, de autoria de Guido Battelli, destinava-se a ilustrar o soneto Toledo, de Charneca em Flor.
Acerca da morte de Florbela Espanca, o Padre Nuno Sanches, pároco de Matosinhos, em entrevista concedida ao Primeiro de Janeiro, em 22 de Novembro de 1944, afirma que a poetisa não se suicidou, tendo morrido cristãmente. Para o enterro feito religiosamente não foi pedida nenhuma dispensa ou autorização especial às autoridades eclesiásticas, não se excluindo Florbela do grémio da Igreja.
Novos entraves se levantam para a colocação do busto. Em 4 de Outubro de 1945, consta que o monumento não será erigido porque o busto não é próprio para o ar livre e deveria recolher ao museu.
Finalmente o busto está no Jardim Público. Num acto sem solenidade, em religioso silêncio, sem alardes. Nem um só discurso. Flores espalhadas em profusão à volta do monumento, devendo-se a erecção do busto à Câmara de Évora, na pessoa do seu presidente, Eng.º Henrique da Fonseca Chaves. Eram 9 horas de 18 de Junho de 1949.
Celestino David podia gritar hossanas ao fim de 19 anos de trabalho. Comunicara a Guido Battelli, retirado em Itália, onde ia acompanhando Florbela, depois da sua saída de Portugal.
Mário Lage enviara a 19 de Maio de 1934, todo o espólio de Florbela a José Emídio Amaro que o ofereceu ao grupo Amigos de Vila Viçosa.
É verdade que Florbela nascera filha de pai incógnito, sendo educada pelo pai biológico João Maria Espanca que só a vai perfilhar 19 anos após a morte da filha, em 1949, por insistência de um grupo de florbelianos, por altura da inauguração do busto.
Não ficou indiferente às constantes notícias em torno de Florbela Espanca, o grupo Amigos de Vila Viçosa. Florbela era calipolense. Deveria regressar à terra que a vira nascer. A súplica “Terra quero dormir, dá-me pousada” cumpriu-se. A alentejana que tão bem cantara a sua terra, regressava. A exumação dá-se em 16 de Março de 1964, procedendo-se a trasladação no dia seguinte para mausoleu próprio.
A Matosinhos, à sua Biblioteca Pública, foram doados alguns retratos e pequenas recordações, conjuntamente com as primeiras edições dos seus livros.
Dos despojos, Mário Lage acedeu a que três peticionários retirassem umas pequenas relíquias que declararam conservar como se fossem elementos sagrados. Mais tarde, Mário Cláudio, em Cidade no Bolso, escreverá um texto a que deu o título de Os ossinhos de Florbela.
Porque Vila Viçosa, também, estava apostada em celebrar a sua poetisa, à semelhança do que sucedera em Évora, foi inaugurado um busto de autoria do escultor Raul Xavier e o plinto do arquitecto Raul David, tendo discursado o escritor José Emídio Amaro e o Dr. José Madureira.
Muitos anos passaram na apatia, na turbulência, no desânimo e na obstinação dos que gostavam ou não gostavam. Venceram os mais tenazes e os que não soçobraram a critérios que não se compaginavam com o valor da maior sonetista nascida no Alentejo.
Revoltas as águas, vieram espraiar-se na terra planas, sossegando os espíritos e inspirando os que à poesia dedicam o seu tempo e aos que teimam em ler os que a este país acrescentam muito do seu talento, e o fazem ombrear com os maiores.
O nosso tributo a um escritor que há muito apreciamos. Trabalho que nos entusiasmou e que ao escrevermos, mostrámos o que estava disperso e desconhecido, formando este puzzle a que denominámos texto.
Por João Cabrita
Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico