A chuva tem sido o sol nos últimos dias numa Primavera que parece ter amuado.
No rosto dos homens e das mulheres existe um esgar que comunga do tempo que os cerca. Vamos arranjando espaço para nos relacionarmos e pensar que existe vida para além da chuva. Procuramos não capitular perante a nebulosidade do quotidiano.
Temos os nossos arquétipos. Vivemos de modelos aos quais damos tributo. Não nos esquecemos daqueles que à língua deram o melhor de si. Comemoramos as celebridades e trazemos à memória as datas que vamos registando.
E neste périplo pelas palavras, recordamos, neste jornal de província, Mário de Sá-Carneiro, autor às letras consagrado, tão esquecido dos compêndios e ostracizado no estudo da Literatura, confundido com o político falecido no desastre de Camarate.
Para o mundo da Literatura, é difícil pensá-la sem nos debruçarmos sobre a figura de Sá-Carneiro, desaparecido aos 25 anos em Paris.
Recuando no tempo, vemo-lo a abraçar o projeto idealizado em parceria com Fernando Pessoa, que daria origem à revista Orpheu, por proposta de Luís de Montalvor, em Fevereiro de 1915, e custeado pelo pai, tendo como editor António Ferro. 1915 marca um virar de página nas letras portuguesas. Contestada e apoiada é a hora do Modernismo em Portugal.
Proveniente de uma família abastada, o pai engenheiro militar, viaja pela Europa, levando, muitas vezes, o filho consigo. Tem conta aberta nas melhores livrarias de Lisboa, recebendo directamente publicações estrangeiras. De muito novo sente grande atracção pelo teatro, raramente faltando à representação de uma peça. Em Lisboa passeia-se de automóvel particular pelas avenidas.
A morte da mãe, Águeda Maria Murinello, com 23 anos, priva o jovem Mário, com dois anos, da afectividade que o pai não lhe proporciona, o que virá a provocar insegurança, timidez e dificuldade de comunicação, ultrapassada na bibliografia que nos legou.
Nascido em Lisboa, em 19 de Maio de 1890, órfão de mãe, muito jovem, vê o pai, Carlos Augusto, casar, anos mais tarde, com uma mulher frequentadora de locais nocturnos, hostil a Mário, sendo-lhe, mesmo, vedada a entrada na residência familiar, vivendo, por isso, na Quinta da Vitória em Camarate, com os avós, criados e a ama, por quem se afeiçoa. Durante a Guerra, o progenitor parte para Moçambique, o que dificultou o envio das mesadas para o filho. O excesso de protecção mantido desde criança, proibindo-o de sair por razões de condição social e perigo de doenças, que já o tinham afectado aos dois anos, com uma febre tifóide, e que se manteria ainda na idade adulta, diz da dificuldade de calçar-se e vestir-se sozinho; tudo isto fez de Sá-Carneiro um ser inibido, complexado e de pouca estima por si próprio, de pouca valia, com níveis depreciativos consideráveis, centrados na imagem que vai desvalorizando através da escrita, como escreve na primeira quadra do soneto Aqueloutro
O dúbio mascarado, o mentiroso/Afinal, que passou na vida incógnito;/O Rei-Lua postiço, o falso atónito;/Bem no fundo o covarde rigoroso…
Pegando em O Rei-lua, escreveu José Jorge Letria um livro de poesia, notável, que intitulou A sombra do Rei-Lua, editado em 1991, prémio Cesário Verde, da Câmara Municipal de Oeiras, onde passa em revista, em 50 poemas a vida de Mário de Sá-Carneiro, numa publicação da editora Limiar.
Embora tímido e de pouco relacionamento, mantém com Fernando Pessoa uma amizade que se prolongará até ao final da sua vida. Dele dirá o poeta do Mostrengo “Sá Carneiro não teve biografia, teve só génio. O que disse foi o que viveu”. Vivendo num período em que a situação política que tinha levado à proclamação da República, permitia uma grande liberdade de expressão, podemos imaginar a sua vida transposta para os textos em que escreveu, muitos considerados de carácter autobiográfico e confessional.
Exprimindo-se como os modernistas, numa linguagem inteiramente nova, pondo em causa a ordem estabelecida, num léxico aparentemente selecionado, a sua prosa, por seu turno, apresenta um carácter hermético. Não é fácil entrar no mundo interior que criou, comparativamente a obras narrativas mais acessíveis e mais consentâneas com o período político em que viveu, daí confessar a Fernando Pessoa que a sua poesia talvez fosse entendida dentro de vinte anos.
Terminados os seus estudos secundários, no Liceu Camões, onde o seu estro já tinha dado provas, quer representando, escrevendo ou traduzindo, em Outubro de 1911, requer admissão na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde não teve assiduidade nem concluiu o ano escolar. Coimbra não o atraiu. Não fez nenhum exame. Confessando ao pai a impossibilidade de viver em Coimbra, fora de casa, longe dos amigos, pede que o autorize a regressar a Lisboa, onde procuraria no início do ano seguinte matricular-se em Letras no curso de Filologia Românica. Nos seus escritos nada surge que recorde a sua passagem por Coimbra.
Precisava de mundo. Era um insatisfeito. Ruma a Paris, matriculando-se em Outubro de 1912 na Faculdade de Direito em Paris. Escreverá:
Paris da minha ternura/Onde estava a minha obra.
Os meios financeiros de que dispõe começam a escassear. A mesada não chega a tempo de satisfazer as suas necessidades. Paris é a musa da sua infelicidade. Aí encontra talento para escrever estados de espírito depressivos, em 1913, justificando a sua inquietude e a impossibilidade de satisfação, escreverá em Dispersão, primeira quadra de um longo poema:
Perdi-me dentro de mim/Porque eu era labirinto/E hoje, quando me sinto,/É com saudades de mim.
Buscando o inalcançável, dirá em Quase
Um pouco mais de sol – eu era brasa/Um pouco mais de azul – eu era além./Para atingir, faltou-me um golpe de asa…/Se ao menos eu permanecesse aquém.
Dimensionando-se numa minoria que não alcança o imaginado, na capital da cultura, cujas aulas abandona, parece medir-se. Em quadras de grande pendor nihilista, eis o poeta escrevendo em forma de epitáfio, o poema a que deu o nome de Como não possuo, de que extraímos a primeira quadra, não muito diferentes das oito restantes que constituem o poema
Olho em volta de mim. Todos possuem-/Um afecto, um sorriso ou um abraço/Só para mim as ânsias se diluem/E não possuo mesmo quando enlaço.
Como se o fim estivesse próximo, escreve a Fernando Pessoa, seu querido amigo, a quem confessa gostar muito, uma carta em 4 de Abril de 1916, anunciando o seu suicídio às duas e meia na estação de Pigalle (Nord-Sud) e que deixaria a sua stylo na caixa de certo café, como última recordação
Parecia a morte-espectáculo tal como a de Tomás Cabrera Júnior seu colega no Liceu Camões que aí se suicidou com um tiro de pistola na boca.
A 26 de Abril de 1916 convida José (António Baptista) Araújo a ir ao seu quarto, no Hotel de Nice, Rua Victor Massé, 29 em Paris que o encontra em cima da cama já morto. E é José Araújo que dá a conhecer a Fernando Pessoa e ao mundo, pormenorizadamente, como encontrou Mário de Sá-Carneiro, já defunto depois de ter ingerido cinco frascos de estricnina, provocando-lhe um inchaço que impedia o corpo de entrar no primeiro caixão que fora encomendado, ficando sepultado no cemitério Pantin, em coval alugado por cinco anos.
Na Athena – Revista de Arte, vol I, nº2, de Novembro de 1924, escreverá Fernando Pessoa sobre Mário de Sá-Carneiro, um texto de duas páginas (41 e 42) inserindo, ainda, alguns poemas, cujo início é elucidativo: “Morre jovem o que os Deuses amam…”
E nós, debruçados na biografia deste jovem que se subtraiu à vida, continuaremos a lê-lo no muito que escreveu, disperso pelas Bibliotecas que nos bons livros investem muito do seu orçamento:
Mário de Sá Carneiro, de Maria Aliete Galhoz
Mário de Sá-Carneiro, de Maria Estela Guedes
Mário de Sá Carneiro e a Génese da Amizade, de François Castex
Poesias
A Confissão de Lúcio
Céu em Fogo
São alguns dos muitos que há para ver, folhear e ler.
Por João Cabrita
Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico.