Qua, 27/04/2016 - 10:43
Irmãos, na dolorosa condição transmontana.
Antes de vos falar desta tribuna, curvo-me perante a memória sublime do grande Vieira, António, o padre que tanto prestigiou a nossa língua e a capacidade de discernimento de que também somos capazes.
A minha prédica , porque sermão será mais próprio de olímpicas criaturas, é sobre a vossa Constituição, aprovada há 40 anos, depois de turbulências que quase empurraram o país para uma tragédia, mais infernal do que os tempos do autoritarismo quase pacóvio, embora arrogante, que vos manteve, de forma humilhante, na ordem e na tranquilidade enganosa de um paúl putrefacto.
Mas, com a ajuda dos deuses, a barca não tomou o caminho do Lethes e, quarenta carnavais depois, aí tendes, por misericórdia, uma lei fundamental que gostaríeis que fosse a garantia de um futuro de horizontes límpidos e abençoados.
Será?! Ao que vejo, não sois faltosos de fé, como não o é a raposa de rabo. Mas, antes que os deuses lancem sobre vós o olhar crítico que sempre os caracterizou, com consequências que podem ser demolidoras, como raios empiedosos, bátegas diluvianas e vapores sulfurosos, lêde o grande livro e entendereis quão miserável é a vossa condição, oh gentes que tanto gostaríeis de ser os benditos peixes que ouviram piedosamente o Fernando de Bulhões, ou António de Pádua, melhor, de Lisboa.
Compreendo que vos foi dito que os simples ganharão a terra e também que dos pobres de espírito será o reino dos céus. No entanto, não podereis ficar à espera que um qualquer demiurgo vos faça o milagre da instalação eterna da perfeição na vossa vida política.
Os milagres guardam mistérios que, pobres de vós, não vos são acessíveis. Por isso, preparai-vos para estar atentos aos sinais e procurar os caminhos da redenção, que são povoados de escolhos, senão mesmo de salteadores sem contemplações.
Quando suspirastes de alívio, convencidos que o escrito nas pedras do tempo orientaria as vossas vidas, relegando para o rio da morte a cobiça, o orgulho, a inveja e a indignidade, estáveis enganados.
Há dois mil anos, um filho divinal deixou uma boa nova que, até ver, foi florescendo, de quando em vez, mas ainda não logrou transformar o mundo. Era a grande utopia, com o resultado que se vê: a matança continua, os esgares de ódio e a baba da gula não abandonaram os dias das nossas vidas.
Também vós, pobres criaturas do poente, apesar da vossa amada Constituição, produto de um parto heróico que um primaveril novembro vos propiciou, podeis ver que, apesar do que lá ficou escrito, a corrupção encontrou terreno para germinar e crescer, ao ponto de tomar conta da lavra. É o vosso inferno.
Já vai sendo tempo, antes que chegue o juízo final, que tomeis consciência de que a fé não vos basta. São precisas as obras.
Porque de fé na justiça e na equidade para todos os habitantes desta terra, já pudemos tirar as lições necessárias. Os transmontanos não são tratados como iguais relativamente à generalidade dos outros. Por isso, continuo a ver-vos demasiado rendidos à lassidão, à preguiça, ao comodismo e à resignação. Acordai para o futuro, criaturas.
(Que a misericórdia de Vieira me resgate do inferno do ridículo.)
Por Teófilo Vaz