Ter, 10/04/2018 - 09:56
Há meio século, por noites e madrugadas, formigueiros de gente calcavam carreirões no mato, junto à raia, com pressa, o coração a saltar no peito, a esperança de que a lua fosse preguiçosa e os guardas fiscais tivessem mais que fazer.
Chamou-se-lhe passar a fronteira a salto, para chegar a terras de França, onde o futuro prometia outra vida, ao largo da pobreza a que as gentes se sentiam condenadas se por cá ficassem, repetindo destino de pais e avós, na tal apagada e vil tristeza, vestida de preto, remendada e encabada nuns socos.
A memória de uma outra aventura em França, outros cinquenta anos para trás, era difusa ou fantasiada, que a marca da tragédia também se desvanece, apesar dos milhares de estropiados e mortos que por aquelas paragens marcaram a história deste país e desta região durante a grande guerra.
Mas tudo seria melhor que o torpor imposto pelo regime, trôpego e misantropo, que se imaginava a fechar o próprio céu e a apagar o Sol, para matar a Primavera. Nestas terras o horizonte pesava sobre corpos e almas. Alguns já haviam procurado brasis, outros esperavam áfricas de sonho.
Afinal, aqui mais perto o salto valia a pena e Paris seria sempre Paris. Foram décadas de saudade e de aposta num retorno para dar ao berço a forma de palácio, à medida das ambições de cada um. Mas, quando se lhe abriam as janelas sentia-se a ausência a crescer até à angústia da infinita solidão.
Prometida a liberdade, a dignidade, o desenvolvimento e mesmo a prosperidade por novíssimos salvadores da pátria, o que se impôs foi um buraco negro, que arrastou, no rodopio vertiginoso, tudo o que ficara. Depois do salto faltava o chão para fincar os pés deste lado da vida.
Os filhos e netos dos que foram, pela calada da noite, na senda de dias melhores, também não encontraram condições para chegar a fruto e passaram ao salto feito às claras, sem medos nem remorsos, porque ficar era outra forma de desistir da vida, que é só uma e não se pode esgotar na paciência sem esperança.
O Museu de referência da capital de distrito tem patente uma exposição, com componentes interactivos, sobre esse fenómeno da nossa sociedade que foi a emigração a salto, um documento importante para que pensemos sobre o que nos tem condicionado a relação com a terra que nos viu nascer. É importante conhecermos a história, feita de histórias, empolgantes ou vulgares, porque o presente e o futuro só são explicáveis integrados na dinâmica estrutural, borbulhante de protagonistas e dos episódios das suas vidas.
Ali ficamos a saber das condições do salto, opção inadiável para fugir à humilhação. Reconhecemos a coragem de quem arriscava, celebramos o denodo de quem soube viver com saudade e manteve a ligação às raízes, percebemos que havia o lado obscuro dos esbirros do regime, mas também a solidariedade pachorrenta de alguns guardas fiscais. A iniciativa também nos permite a constatação que o salto foi uma ruptura com a resignação, que ainda não encontrou forma de serenar, porque apesar das aparências, os factos, a dureza da realidade, revelam que então se iniciou um salto que parece sem fim, porque os que ainda cá estamos continuamos inquietos perante perspectivas de tempos de agonia de que as gerações do futuro já não quererão ser testemunhas.
Teófilo Vaz