Pessimismo realista

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Ter, 27/12/2016 - 01:49


Bem pode Francisco apelar às lágrimas por Alepo e pelos milhões de deslocados, por cima de mais um Natal de luzes cintilantes, mesas fartas e planos para festarolas de fim de ano, que o mundo continuará no seu ritmo de desgraças, sem contemplações por piedosos lamentos ou simples alívios de consciência.
Andamos há dois milénios a viver de fé e de esperança, apesar da vida real, que só nos espanta, sem nos transformar no fundamental da existência, que dizemos querer humana, mas que nos reconduz sempre à vil condição das bestas que nunca deixámos de ser.
Os defensores da paz, da justiça e da equidade não passaram de visionários tresloucados, olhados, por vezes, com complacência divertida, geralmente prontinhos para a festa bárbara da chacota, coitados, tontinhos, ridículos no seu despojamento que os consome sem que cheguem a dar fruto.
A observação do percurso da humanidade conduz-nos inevitavelmente à constatação, talvez dolorosa, de que a tranquilidade e a paz, entendida como pouco sangue a correr, requerem força que imponha a ordem contra os instintos e o egoísmo, triturador de todas as virtudes.
Historicamente largos espaços territoriais conheceram tempos de prosperidade, suportados na força que impôs ordem no caos potencial, proporcionando memoráveis conquistas na elevação da humanidade. No entanto, não foi nunca atingida a definitiva mudança da natureza humana, que reinstala sempre a selva primordial, por entre arreganhos, pauladas, golpes, balas, tiros de canhão, mísseis ou bombas atómicas, num verdadeiro crescendo de orgia sanguinária.
O discurso da paz sem a força de pouco servirá, até se tornar realmente anedótico, mesmo quando o ouvimos de verdadeiros santos. Cristo, o fundador da misericórdia, acabou crucificado. Depois dele poderíamos citar Francisco, o santo de Assis, que abdicou de confortos pelos outros. O seu exemplo ainda é referência, 800 anos depois, provavelmente porque nada mudou. 
O pacifista Gandhi continua a ser objecto de troça no sub continente indiano e os papas católicos da segunda metade do século XX, militantes da paz até ao sacrifício, vão sendo santificados ao ritmo das novas guerras, servidas em directo à mesa de gentes que querem ser cegas, surdas e mudas enquanto a civilização se esfrangalha.
Na próxima semana inicia funções como Secretário-Geral da ONU um português digno, esforçado, talvez ingénuo, que tem concitado aplauso e orgulho entre alguns de nós. Vê-lo-emos em dura jornada, ao lado de Francisco e de outros piedosos, a assistir ao agravar das tensões, do sofrimento inútil e da miséria, até uma tragédia maior, que nos conduzirá à calma que resulta da exaustão da matança.
Então, de novo, se sonhará com uma humanidade redimida, “peace and love” por todo o lado. Mas, como a memória se desvanece num sopro, o hedonismo fará novamente o seu caminho, cavalgando vaidades e comodismos até à próxima hecatombe.
Podia ser de outra maneira. Certamente: se vivêssemos noutro planeta e fosse outra a nossa natureza.