A luz mortiça da estrela de Belém

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Qua, 20/12/2017 - 10:21


Há dois milénios que se alimenta a esperança, anunciada por estrela fulgurante sobre Belém, de que novos tempos reconduziriam a criação às portas do paraíso, desígnio último de um Deus afinal misericordioso, compassivo, salvador. Foi o primeiro Natal.
Mas dez séculos passados esperava-se pelo fim deste mundo, um vale de lágrimas, porque a violência, o sofrimento, a iniquidade mantinham o seu peso esmagador sobre cada dia das vidas dos míseros mortais, que esperavam o juízo final, atroz mas libertador.
Na Europa de então uma sucessão de misérias, sangue, terror e desespero, isolara comunidades, varrera do mapa a rede urbana que os romanos haviam criado, desactivara milhares de quilómetros de estradas, por onde passara a alegria da prosperidade. De facto, houvera tempos abençoados em que um número crescente de pessoas beneficiou de condições historicamente inéditas de dignidade num território em volta de um mar cálido e tranquilo, o Mediterrâneo, imenso lago que unia, temperava e proporcionava o sentimento de que a terra do vinho, do azeite e do mel, o Éden de todas as venturas, ali estava por tempo infinito. 
Das estepes da Ásia Central irradiaram movimentos de hordas semi-nómadas, ao ritmo da natureza selvática, que provocaram razias à sua volta sem contemplações, com ondas de choque que abalaram a tranquilidade de múltiplas gerações. Quando flanquearam os limites do império romano instalou-se o caos, o lamento da vida, a procura do fim redentor, agravados dois séculos depois por cavalgada infrene, que varreu o norte de África, fazendo do mar tranquilo um poço de fantasmas e subiu à Península Ibérica numa promessa de morte, outra vez em nome de um Deus que voltava a ser tonitruante, maniqueísta, segregador, proibicionista e vingativo. Ainda hoje o mundo sente os efeitos dessa vaga no frenesim do fanatismo que decapita, escraviza e rebenta sem sentido. 
Durante mais quinhentos anos a estrela de Belém tremeluziu, enfraquecida, permitindo que os seus seguidores perdessem o rumo, enredando-se na superstição, na irracionalidade, na propensão sanguinária, a meias com os que tinham como referência o crescente da lua e dominaram, a partir da velha Babilónia, terras e gentes dos contrafortes do Tibete às montanhas do Atlas, realidade que, apesar das ilusões, permanece com expressões ameaçadoras em todas as turquias, no inferno afegão, nos territórios de Ciro e Dario, os grandes da Pérsia clássica, no antigo império dos faraós, onde glórias milenares são desprezadas e na África romana, onde hoje volta a campear a barbárie, como nos é dado ver nos noticiários.
Quando a estrela de Belém pôde ressurgir com algum fulgor, alguns seguidores não tiveram olhos para lhe ler os sinais e persistiram na orgia irracional e no proselitismo ameaçador. Outros perderam o rasto da estrela ou foram consolidando a convicção de que a boa luz para guiar a humanidade é a da inteligência, da razão, da capacidade de pensar e sentir além do que os instintos determinam.
No entanto, não se prepararam para resistir às novas investidas do obscurantismo e da boçalidade roncante. Arriscam, por isso, voltar a tempos de trevas, paradoxalmente quando parecem dispor dos meios que lhes poderiam abrir as portas do verdadeiro mundo novo.