Inquietações que sobram da Cimeira Ibérica

PUB.

Seg, 12/10/2020 - 22:25


Apesar da estranha evocação do tratado de Tordesilhas, num passe de retórica retumbante do Primeiro-Ministro português, a Cimeira Ibérica da Guarda ficou marcada mais pelo nevoeiro, que retardou a chegada de Sanchez, do que pelos horizontes radiosos que dali se pretenderiam vislumbrar.
A nova investida da infecção viral também terá contribuído para despachar a coisa, que outras urgências se impõem enquanto não se encontra caminho para chegar a um porto de alívio, o que promete tornar-se numa epopeia que calhava melhor aos heróis quase deuses dos grandes mitos da antiguidade, correndo-se o risco de redundar em memorável tragédia.
Tordesilhas chegou ao discurso de António Costa para ilustrar a cooperação ibérica nas comunicações, que colocariam os dois países numa pretensa vanguarda, com efeitos potenciadores do desenvolvimento das regiões raianas. Depois de liderar o mundo no processo de globalização económica e cultural, há cinco séculos, nós, os ibéricos, estaríamos agora a dar o exemplo da cooperação em vez da soberba que nos levou a dividir o mundo, originando séculos de distanciamento e desconfiança, com reconhecidas vantagens para alguns países do norte da Europa, que hoje nos consideram pobres, burros e maus sujeitos.
Aparentemente a realidade transfronteiriça, num estado de degradação demográfica sem precedentes, com uma economia debilitada, terá sido objecto das preocupações dos responsáveis dos dois países.
No entanto, se nos detivermos a observar com frieza racional, talvez não encontremos razões para aplaudir os líderes dos dois países, quando era vital que se invertessem decisões e omissões gravosas para as populações portuguesas e espanholas que quiseram, mas não puderam manter-se em territórios que mereciam outro futuro.
No que nos diz respeito, o Primeiro-Ministro português reiterou a construção da ligação entre Bragança e Puebla de Sanabria, esquecendo que se trata de uma reivindicação com mais de um quarto de século, travada pela intriga politiqueira em que governos do seu partido tiveram papel pouco recomendável, assim como fez o PSD, nomeadamente quando foi liderado pelo o actual titular do Palácio de Belém, à beira do Tejo e da maresia.
Anunciar ligações é uma trivialidade, quase sempre sem consequências. Veja-se o que estabelecia, para o distrito, o plano rodoviário 2000, aprovado na década de noventa. Quanto tempo demoraram a realizar-se as obras já feitas? Quantas ficaram por realizar e entretanto foram renegadas por sucessivos responsáveis governamentais mais rosados ou alaranjados? Como é possível que o Estado português não se bata para que a ligação de Zamora à fronteira, em Quintanilha, avance com rapidez, quando já passaram sete anos sobre a conclusão da A4, mantendo-se o constrangimento na A82, com prejuízo objectivo na mobilização de investimentos para o distrito de Bragança? Para quando as ligações de Vimioso e de Vinhais à A4?
Talvez os milhões prometidos pela Europa não cheguem para os investimentos sugeridos no litoral pelo conselheiro mor do Primeiro-Ministro. A sua concretização agravará as diferenças que sentimos na pele, conduzindo ao definitivo encerrar de todas as esperanças num futuro de justiça e equidade para todos os cidadãos de Portugal e de Espanha?

Teófilo Vaz