Ter, 04/06/2019 - 11:17
Vai-se tornando habitual a prática, dita virtuosa, de protagonistas deste dito mundo ocidental, de substrato clássico e judaico-cristão, a pedir perdão a grupos, comunidades ou culturas, assumindo que não agimos sempre de acordo com os valores actuais, que ajudámos a construir e são referências para o mundo. Um dos mais insistentes tem sido o Papa Francisco.
Qualquer estudante de um curso de História saberá que não deve infectar o conhecimento sobre o devir da humanidade com os modelos ideológicos, éticos ou morais do seu próprio tempo, porque correria o risco de produzir representações distorcidas, dúbias, mesmo falseadas das realidades que observa, que conduzem à formulação de juízos espúrios, caprichosos, quase sempre ridículos, que não contribuem para a inteligibilidade das dinâmicas estruturais, das interacções conjunturais e dos factos visíveis a ‘olho nu’.
Nem todos os viventes têm essa obrigação. Por isso, muitas vezes, os passageiros do tempo se vão consumindo de medos, de iras e de desânimos, numa tragédia demolidora, sem fim. Sentem-se na desolação de um mundo entendido como tortura necessária para atingir a redenção, na eternidade, talvez o maior de todos os nossos sonhos.
A relação com a vida não tem que ser um suplício de autoflagelação. A racionalidade suporta o sentido crítico, fundamental para que não sejamos sofredores resignados, mas procuremos os caminhos da aventura que nos conduzam aos dias claros da liberdade, da dignidade, da fraternidade, do tal amor ao próximo, olhos nos olhos, fecundo e empolgante.
Mas o sentido crítico, expressão da inteligência, não é confundível com a mortificação doentia do remorso pelo que foi o papel da nossa cultura no percurso civilizacional, muito menos a propósito de moralidades efémeras, indutoras de fanatismos alimentados por pulsões que proliferam no caldo azedo da irracionalidade.
A consciência do erro é condição de vida inteligente. A civilização construiu-se no processo dialéctico de tentativa e erro, novas tentativas e, naturalmente, outros erros, talvez menos trágicos, anunciadores de soluções, nunca definitivas, mas mais próximas do paradigma do que imaginamos ser o bem, por contraposição ao que sentimos como negativo, cruel, repulsivo, essa realidade brutal a que chamamos o mal.
Estamos no mundo para construir, de raiz, o que não existia. Não viemos para um jogo com regras pré-estabelecidas, claras e absolutas. Por isso, também é importante que tenhamos consciência das nossas virtudes e do contributo dado por todos, ocidentais ou orientais, do norte ou do sul, para a civilização.
Foram-se consolidando valores que consideramos inalienáveis, que será preciso cultivar com determinação e serenidade. Não há razões para uma parte do mundo passar a vida a pedir perdão ao resto dos viventes pelo caminho feito por todos. Se assim não for, qualquer dia entraremos numa espiral absurda de culpas e perdões sem fim.
Chorar é humano e pode ser nobre. Mas a pieguice e a autocomiseração não são expressões de dignidade, nem sequer de solidariedade.
Teófilo Vaz