Ter, 14/08/2018 - 12:10
Há mais de meio século um menino de dez anos chegou, em Agosto, a Bragança para mês e meio de férias, vindo da tropical Angola, terra de prosperidade anunciada. Voltava ao lugar donde partira havia pouco mais de cinco anos, para longe dos carinhos dos avós, das cerejas de Junho, das casas de xisto nu, da corriça para o gado e das lojas para as vacas e porcos, que haviam de encher de cor os varais por cima da lareira a cada mês de Natal ou entrado Janeiro geadeiro.
Não levara toda a memória da primeira infância. Por isso, estava pronto para se deixar fascinar por uma terra de que fora ouvindo falar, umas vezes com saudade, outras com alívio por não se ter ficado, que a vida era dura e de curtos horizontes.
Nesse Agosto tomou nota de malhas, depois das ceifas, o pó a realçar os traços dos rostos, mesas grandes ao anoitecer, três pratos do tamanho das rodas de um carro, fartos de batatas. Carne pouca, pelo menos não vira os bifes a que mal se habituara além mar.
Também estranhou as trindades, quando o sol caía, mulheres junto à fonte, cântaros à cabeça, tudo parado, em silêncio, para rezar e partir noite dentro. Estranhou mais vê-las a “mijar” de pé, enquanto leriavam, sem que ninguém corasse e não deixou de comentar verdadeiras barbas em rostos femininos, cabelos cobertos por lenços, tudo em tons escuros como as noites tropicais.
O sol era generoso no dia claro mas, pela hora de vésperas, candeeiros de manga de vidro ou simples candeias fumarentas iluminavam vidraças, até que o sono empurrasse para charagões, cheios com colmo ou palha de milho. Frigoríficos eram os cantos frescos das adegas térreas, rádio e televisão modernices de por aí abaixo, água corrente havia na fonte e quarto de banho só o conheciam alguns fidalgotes da cidade.
Atreito à novidade foi com um tio, pastor da casa, um dia inteiro com o gado. Aprendeu a lançar pedras certeiras, das que saltavam sobre a água do Baceiro, comeu de seco, bom presunto e salpicão da avó, pão escuro mas saboroso, água das nascentes e um alívio por detrás de fragas sem o civilizado papel higiénico, questão resolvida com folhas, como lhe sugeriu o tio.
Outros cinco anos se passaram e novo Agosto o trouxe à terra. Então já ouviu cornetas de altifalantes nas festas, carros de cores garridas e matrículas complicadas, meninas vistosas, depiladas, lábios vermelhões e sombras doces nos olhos, homens com relógios, pulseiras e cordões grossos ao pescoço, a pontificar no balcão da tasca, num linguajar estranho, dispostos a pagar por cortinhas, lameiros, terras de pão e casas a cair.
Dizia-se que, quando voltassem os que haviam saído em debandada, outro galo cantaria. Afinal, poucos voltaram. Pelo contrário, muitos mais se foram.
Hoje vêm cada vez menos e por menos tempo, que o litoral e as praias são outra loiça. Agosto vai ser, cada vez mais, um tempo de passagem rápida, a caminho de outros folguedos, mesmo se a festarola ainda dá dois dias de beijos, abraços, copos e tainadas.
O menino que viera de férias, já vai para lá dos sessenta e diz cheirar-lhe que, em breve, Agosto pode deixar de ser mês de festas, para se quedar pela nostalgia que a vida há-de curar, se puder.