Cada vez mais a política nacional se assemelha a uma comédia dramática em que o drama está a cargo do primeiro-ministro e a comédia do presidente da república, com a arraia-miúda a assistir divertida, se bem que não bata palmas. Entretanto o partido Socialista continua a destacar-se, sobretudo no que à solidariedade entre adeptos diz respeito. Muito embora a dita solidariedade entre pares, consubstanciada no nepotismo e na partilha de benesses e mordomias, alicerce fundamental da militância e da operacionalidade partidárias, não seja exclusiva do PS mas característica dos partidos de poder. Já no que à coerência ideológica diz respeito o PS é uma farsa, como se sabe. Nada disto invalida, porém, que o PS não seja um partido genuinamente democrático o que também não obsta a que seja o mais atreito a golpes internos, públicos e notórios. Marcante, convém lembrar, foi o golpe bem-sucedido com que António Costa afastou José Seguro do poder no partido e, por reflexo, da possibilidade de vir a ser primeiro-ministro. Mais grave e escandaloso foi, ainda assim, o golpe tentado por Pedro Nunes dos Santos para retirar, à socapa, a direcção do partido e a própria liderança do governo a António Costa, servindo-se da monumental trapalhada que é o projecto do novo aeroporto de Lisboa e aproveitando-se, o que é ainda mais condenável, da ausência do primeiro-ministro na cimeira da Nato, em Madrid. Porque não esperou Pedro Nunes dos Santos pelo regresso do primeiro-ministro para anunciar o seu projecto, é caso para se estranhar e perguntar. Tenha-se em consideração que os melhores dicionários políticos definem golpe palaciano como uma espécie de golpe de estado através do qual um governante ou uma parte de um governo é removido por forças pertencentes ao próprio governo, sem que se sigam as normas estabelecidas. A iniciativa ousada e surreal de Pedro Nunes dos Santos foi, portanto, um golpe de estado palaciano, burlesco, bufo, com o qual tentou passar a ser ele a dirigir, na prática, o partido e o governo, como é óbvio, ainda que formalmente, e só formalmente, tudo continuasse na mesma, ficando ele com os louros dos sucessos e António Costa com o ónus da má governação. Actos como este já terá Pedro Nunes dos Santos ensaiado noutras ocasiões e a propósito de outras matérias da governança socialista. Convém, por isso, apreciar um pouco mais este surpreendente lance, que ganhou cariz de verdadeiro golpe de estado ainda que palaciano, e ao qual a arraia-miúda assistiu incrédula e divertida. Tenha-se em conta que no caso em apreço o móbil do crime foi uma obra emblemática do regime, um projeto de dimensão nacional e internacional, envolvendo muitos milhares de milhões de euros, com impacto em múltiplos sectores da economia e em que estão directamente interessadas todas, ou quase todas, as forças e instituições políticas e sociais, sem esquecer as que tratam das questões ambientais. É certo que a substituição formal de um primeiro-ministro eleito democraticamente, ao arrepio das normas constitucionais em vigor, apenas é praticável com recurso ao uso de forças militares ou paramilitares que o golpista felizmente não tem, nem comanda, não deixando de ser interessante imaginar o que aconteceria, dada a personalidade em causa, se as tivesse ou comandasse. Mesmo assim, o golpe palaciano ensaiado por Pedro Nunes dos Santos, mesmo não tendo recorrido à força das armas, teve o cheiro e o sabor de um típico golpe de estado das repúblicas das bananas, o que é verdadeiramente inacreditável e inadmissível numa democracia europeia como Portugal é suposto ser. É por demais óbvio que se o golpe de Pedro Nunes dos Santos tivesse sido bem-sucedido passaria a ser o próprio a dirigir o PS e a liderar o governo, na pratica, remetendo António Costa para um papel meramente formal e simbólico. Dos reais propósitos desta manobra se apercebeu António Costa que de imediato contra-atacou anulando prontamente o golpe ainda que não tenha saído incólume da refrega. Longe disso. António Costa mais uma vez demonstrou não ter especial vocação para se reunir de personalidades com competência e isenção bastante e, acima de tudo, para coordenar eficazmente um governo. Ainda que, mais uma vez, se tenha mostrado imbatível na trama política, matéria em que só Marcelo Rebelo de Sousa se lhe equipara. Marcelo de Sousa que, enquanto presidente da república, deveria ter condenado o golpe de pronto, de forma clara e drástica, como é seu dever institucional e para tanto tem poder. Não o fez. As praias brasileiras são melhor cenário para esquecer este vergonhoso episódio da democracia portuguesa e desviar as atenções da arraia-miúda das agruras governativas, já que à arraia-graúda estas matérias, de alguma forma, sempre lhe convêm. Talvez por tudo isto Marcelo e Costa joguem tão bem, um com o outro. O que não quer dizer que se deem bem.