A resistência poético-política em Apenas Madrugada, de Francisco José Lopes

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Criar não é comunicar, mas resistir.

Gilles Deleuze

 

1. Prólogo

A quinta obra de poesia de Francisco Lopes, apresenta uma estrutura tríplice. A primeira parte, composta por vinte e cinco poemas, está subordinada ao título “em pleno dia”; a segunda, com o mesmo número de composições, apresenta o sugestivo e romântico título “noite dentro”. A noite, como momento propício para a criação artística e poética, é uma herança romântica. A noite é o momento da viagem e da inquietação do poeta, mas é, sobretudo, o solo onde germina e cresce a poesia. A terceira, com vinte e quatro poemas, responde pelo nome “apenas madrugada” que acabará por dar título à obra.

 

2. Uma poética de resistência

A poesia e a imaginação asseguram ao ser humano

a possibilidade de libertação.

 

Em tempo, asseverei que a poesia de Francisco Lopes era “a poesia da vida”. Agora, afirmo que a sua poesia é uma poética de resistência, não só em seu benefício, mas sobretudo em prol da coletividade.

A pessoa do autor resiste, encontrado o poeta formas de dizer o mundo e o homem através da linguagem, questionando, em simultâneo, o seu próprio meio de expressão, ou seja, o seu modus faciendi, ou, por outras palavras, o seu processo poético.

Temos, assim, mundo, sujeito e linguagem, três formas de combate no território – não neutro – da página em branco, lembrando Mallarmé. O vate recorda-nos, na composição “Poema da liberdade”, que: “as palavras querem-se livres / mesmo na palma da mão / e uma folha branca / é como a própria vida / nunca se deve usar em vão!”. A linguagem, isto é, a palavra nunca é utilizada em vão, comporta sempre alguns riscos, tanto para o emissor, como para o receptor. A este propósito, lembro o poeta Carlos Oliveira que, no poema “Vento” do livro Cantata, escreve: “quem vos ferir / não fere em vão, / palavras”.

A resistência é, pois, um ato de desafio ao status quo que está escorado e acomodado à menoridade. Neste contexto, a obra poética, como toda a literatura, vale pelo que lá está escrito, isto é, as palavras, mas também pelo que não lá está, ou seja, pelas ideias que promovem e, sobretudo, por compelir o leitor a pensar. E sobre as teias de sentidos que enformam os poemas, recorro às palavras do poeta Nuno Júdice que afirma: “os fios de uma lógica que não passa apenas pelo sentido ou pelo que é dito, mas sobretudo pelo que só a perceção instintiva, sensorial, pode captar, no que está para além do que é dito e se solta das próprias palavras”.(1)

Chegados aqui é tempo de colocar três interrogações, a saber: quem ou que tipo de voz pensa, escreve e resiste; ao que resiste e, por fim, como resiste.

À pergunta quem ou que tipo de voz resiste, respondo que, antes de mais, é a própria poesia, que resiste através da linguagem. Ora, sendo na enunciação literária, a voz que resiste poética e ao ser poética não deixa de ser política, isto é, de ter implicações políticas, pode concluir-se que quem resiste é essa voz poético-política.

Em toda a escritura, e em especial na de Francisco Lopes, está patente a preocupação de fazer da vida algo mais do que o estritamente pessoal, de libertar a vida do que a aprisiona, ou seja, o eu tornar-se voz da comunidade, como já mencionei a propósito de outro livro do autor, pois os problemas que enfrenta e sobre os quais reflete, nos seus poemas, afligem todos. O poeta resiste continuamente, visto que reage ao pensamento dominante cuja finalidade é inferiorizar-nos.

Passando à segunda pergunta, ao que resiste a poesia ou a voz poético-política que no poema se configura. Em primeiro lugar, resiste à própria linguagem, forçando-a a alargar os seus limites, procurando dizer pela linguagem o que ela não diz, ou como já referi, ler o que não está no poema, ou, dito de outra forma, sugestionar outras leituras e interpretações. Neste contexto, esta voz poético-política resiste de forma ontológica e epistemológica à linguagem, lutando contra as formas hegemónicas de articular o mundo.

A página moderna, tal como a linguagem, está já povoada e sobrepovoada pelas intenções dos outros, para usar uma formulação de Mikhail Bakhtin, e a poética de Francisco Lopes, como já referi em vários locais, está pejada de vozes, ou seja, mantém um permanente diálogo intertextual com a tradição literária.

O autor ao escrever de forma diferente do que é esperado desafia a moralidade e a normalidade vigentes, desobedecendo à norma.

Em resumo, a metáfora da página em branco, que a partir do século XIX se impôs, é usada para representar os dilemas criativos do artista perante o vazio que preexiste ao ato criador.

Entrando na terceira questão, como se resiste? Ou por outros vocábulos, como se constrói uma poética da resistência? Há várias formas de resistir, a saber: por oposição, por recusa, por defesa, por não-cedência, por persistência, por insubordinação etc… Francisco Lopes armadilha os seus poemas com o propósito de rebater o convencional e tentar criar uma atitude de pensamento que leve à práxis, criando, assim, uma rutura textual, formal e ideológica.

O próprio estilo, inconfundível, do autor é, também, uma forma de resistência. A língua, para quem escreve, revela-se um sistema desequilibrado, daí que o escritor tente escrever, nessa mesma linguagem, mensagens potenciais que quer fazer passar e aparecer como uma luz que salte da folha escrita e nos faça ver e pensar o que está encoberto pelas sombras das palavras.

Na poesia do autor, como já tive ensejo de escrever, ressoam ecos do romantismo, na medida em que a sua forma é autorreflexiva, onde o poeta procura sentido na experimentação das palavras e na sua relação referencial com o mundo. O ritmo e a musicalidade dos poemas de “Apenas Madrugada” lembram-nos os

poetas simbolistas e modernistas dos finais do século XIX e limiar do XX, onde Camilo Pessanha e Pessoa, entre outros, pontificavam.

Afirmo que opções de leitura e escrita são formas de resistência cultural e não só. O prazer do leitor, perante as composições poéticas de “Apenas Madrugada”, dependerá da sua capacidade de participar na leitura penetrante que os poemas desta obra exigem. Pois estes carmes, mais do que regulamentos de leitura, oferecem experiências que auxiliam a compreensão do outro e do mundo.

 

3. Epílogo

Na primeira parte da obra, encontramos grande agitação exterior, assumindo o poeta a sua culpa por não ter estado atento aos que lhe acenavam em “pleno dia”. Pela segunda perpassa um desassossego interior, onde o poeta “noite dentro” dá azo à sua criatividade literária. Na última parte de “Apenas Madrugada”, o poeta convoca, de novo, à ação os seus contemporâneos para que, decifrando as suas metáforas, se insurjam e lutem por uma vida mais consentânea com a dignidade humana, que é imperativo conquistar, hoje mais do que nunca.

Em resumo, na obra poética de Francisco Lopes e, em especial, no livro Apenas Madrugada o leitor pode encontrar resiliência e inconformismo, intervenção e cidadania, educação e cultura, tudo mediado pela memória e o sonho quimérico de transformar mundo. A memória e o sonho são o património imaterial que alimenta o homem. A memória é o que nos prende à terra, é a raiz que nos sustenta em dias de vendaval. O Sonho é a tentação de quebrar essas cadeias e de ser totalmente livre, realidade inatingível, mas sempre almejada.

Recorrendo a uma linguagem poética cristalina e depurada, o poeta lembra-nos, entre outros cantos e desencantos da vida, que é tempo de resistir e de ter esperança, que ainda é tempo de canção de Abril, abril e maio são dois meses abundantes e significativos na sua produção poética.

O que alimenta a poesia de Francisco Lopes é a paixão pela vida. Por isso, ela é sempre recetiva, dialogando com os outros textos e com os leitores, convocando-os, de forma permanente, para um esforço de memória literária e para uma cumplicidade de camarada de (desen)cantos poéticos e existenciais. Na sua poesia, marcada por um intersecionismo de vozes diferentes, por tempos desencontrados, por leituras diversificadas, o que fica é o que foi resistindo às contrariedades da vida e da literatura.

Numa permanente lucidez à Álvaro de Campos, com uma contínua análise à realidade, a poesia de Francisco Lopes fascina pelo engenho e arte do verso e da organização estrófica e pela coloquialidade que cativa o leitor. Por todos estes atributos, a sua poesia é de grande rigor e maturidade, predicados que o leitor pode encontrar nesta como nas restantes obras do poeta.

Termino, citando as palavras de Jorge Luís Borges. Diz o narrador/Borges no conto “Biblioteca de Babel”: “preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono (biblioteca) em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á longamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita”.

Este morto não é o autor empírico, ou seja, a pessoa biológica, mas o autor textual, isto é, a obra, que não perecerá.

Oxalá, que destino semelhante e fecundo tenham os poemas de Apenas Madrugada, vivendo perenemente, na aceção horaciana, na mente e no coração dos leitores.

 

Norberto Veiga