A Queda dum Anjo

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Entre Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, eclético alfacinha com fundas raízes em Terras de Basto, e Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, transmontano dos quatro costados que saiu de Caçarelhos, já em mil oitocentos e picos, para assumir o papel de deputado em Lisboa, onde se deixou corromper por luxos e prazeres, não há a mais ínfima semelhança, note-se bem.

Marcelo Rebelo de Sousa continua a merecer a imagem de homem impoluto, sóbrio, nada dado a vaidades e devotado às grandes questões sociais dos nossos dias. Mas é aqui que a porca torce o rabo.

A Lisboa actual conserva aspectos idênticos, sobretudo no que ao abandalhamento da democracia diz respeito, aos versados em 1866 pelo genial Camilo no seu romance satírico “A queda dum Anjo”, que caricatura a vida social e política portuguesa daquele tempo. Hoje até nem lá faltam transmontanos finórios, mal-afamados, que deixaram a pureza das berças para aprimorar as suas competências na desnorteada capital.

Para muitos compatriotas que o elegeram Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa continua a ser um verdadeiro anjo, se bem que esteja em queda acentuada, como as sondagens o demonstram, desde que se consolidou como uma figura popularucha, beijoqueira, verdadeiro papa beijos.

O homem exagera, é voz corrente, como ainda aconteceu recentemente com o telefonema de viva voz que teve o desplante de fazer a uma conhecida e astuta figura mediática.

O problema não está tanto na excessiva exposição mediática ou na matéria foleira que alimenta programas televisivos e revistas cor-de-rosa. Está, sobretudo, na consequente perda de autoridade política e no aligeirar da dignidade institucional a que um Presidente da República jamais se deve arriscar.

Não se contesta que Marcelo Rebelo de Sousa procure ser amado pelo seu povo. Em nenhuma circunstância, porém, deve ser objecto de chacota pública, deixar de se fazer respeitar, sobretudo pela classe política que, como se sabe, tem especial apetência pelos cínicos jogos de poder.

Marcelo Rebelo de Sousa pode até pretender ser, o que só lhe fica bem, um émulo do bondoso padre Cruz que calcorreava as ruas de Lisboa para valer aos mais pobres e infelizes. (Pena é que atitudes idênticas não as tenham o Cardeal Patriarca, por exemplo, e todos os clérigos, mais votados que andam, ao que parece, a discutir o sexo dos anjos, ou diabos, sabe-se lá).

O afã e cordialidade com que Marcelo Rebelo de Sousa se devota à causa pública são deslumbrantes. Tanto que ele parece nem se dar conta de que está a pisar o risco que separa o populismo mais saudável da perigosa subversão do principal órgão de soberania, que a sua verborreia e mediatismo doentio estão a entorpecer a opinião pública, a encobrir os males do Regime, a postergar reformas urgentes, a branquear as falhas graves do governo e a desacreditar, ainda mais, o discurso político.

A queda do anjo Calisto deveu-se aos luxos e prazeres. A do anjo Celito ao populismo bacoco e risível. Que se cuide.

 

Este texto não se conforma com o novo

Acordo Ortográfico.

Henrique Pedro