O Estado falhou, ele disse

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O Estado falhou! Esta declaração solene, feita pelo Presidente da República a propósito dos acontecimentos de Pedrógão, faz lembrar uma outra proferida por Karl Jaspers no fim da 2.ª Grande Guerra. Jaspers, filosofo, judeu, expulso do ensino pelos Nazis pelo facto de o ser, declarou com humildade que “a culpa do Nazismo é de todos nós”. Claro que ninguém lhe aceitou a tese. Para coisas concretas há culpados concretos e não abstracções como TODOS. “O Estado falhou” é culpar uma abstracção, isto é, não culpando ninguém foi a maneira encontrada de endossar as culpas a alguém. E esse alguém é o rosto visível do Estado, o Governo. A culpa caiu assim inteirinha no colo do Governo. Foi o que as oposições quiseram ouvir. Cavalgando esse mote conseguiram a demissão da Ministra e do Secretário de Estado. Depois calaram-se porque parece que os problemas que Portugal tinha com os incêndios eram dois: a Ministra e o Secretário de Estado. O resto estava tudo bem.

“O Estado falhou”. Dito por quem é, a primeira figura do Estado, quer dizer que o Presidente também falhou no sinistro de Pedrógão. Claro que, também aqui, ninguém aceita a tese. Ninguém acha que o Presidente tenha qualquer culpa nos acontecimentos de Pedrógão. Mas ele acha. Esta pretensa humildade, esta auto co-responsabilização faz lembrar aquele monge tibetano que, quando estalou a guerra, se inquiriu assim: “que falta de calma existiu em mim que tivesse contribuído para esta guerra”? Eu até entendo que o monge veja uma guerra como o somatório de faltas de calma mas que fale logo da sua, percebo mal. Também o Presidente fala da sua culpa que no limite é filosófica como a culpa de Jaspers. Mas fala. São dois exemplos de alter ego, pessoas que atribuem demasiada importância ao que são e ao que fazem. Shakespeare comparou-os àquelas ondas concêntricas que se formam quando uma pedra cai nas águas de um charco, vaticinando: “à custa de tanto crescerem, desaparecem”.

“O Estado falhou!” Foi este o resumo sintético que o Presidente da República fez dos acontecimentos de Pedrógão e de 15 de Outubro. E não fez grande serviço, o nosso Presidente. Por razões múltiplas, a primeira das quais é mesmo saber se é justa esta apreciação. Não obstante as conclusões da Comissão Técnica que aludem disfunções, desconexões, erro nas previsões e falta de planificações como falhas determinantes no combate ao fogo, temo que estas conclusões estejam inquinadas pela conclusão extemporânea do nosso Presidente. Isto porque “Roma locuta, causa finita” que é como quem diz depois de Roma ninguém mais pode falar. Só que “Roma” devia falar no fim e não fazer findar a conversa. Devia fazer a conclusão da conversa e nunca condicioná-la ou sugeri-la. Como podia a Comissão Técnica não falar no falhanço de toda a estrutura de combate aos incêndios se o Presidente já o tinha feito? Só assim se entende que a Comissão Técnica fale da falta de previsão e falta de planificação e ao mesmo tempo diz que a ocorrência foi “inédita”, “o maior fenómeno piro-convectivo registado na Europa”, “o 5.º maior incêndio em potência desenvolvida”, que “pertence a uma nova tipologia de incêndios de 6.ª geração cuja intensidade libertada permite dominar a meteorologia envolvente criando condições de tempestade de fogo e de propagação extrema”, que “durante 10 minutos se propagou a uma velocidade de 15,2Km/h, velocidade quase sem paralelo na literatura referente a fogos florestais”, que “a extrema raridade de incêndios com formação de pirocumulonimbos implica a inexistência em Portugal (e na Europa) de capacidade de leitura necessária para identificar uma situação potencialmente catastrófica deste tipo”, que o “incêndio de Pedrógão era motivado por downdraft(s) e que o de Góis, ali ao lado, não tinha qualquer semelhança”. Falou ainda, na ocorrência de “downburst(s)” que é, para leigos, um tornado invertido ou mais grosseiramente, só para fazer uma ideia e só para nós, imagine-se um fluxo de ar a uma velocidade incrível descendo pela chaminé fazendo maçarico no braseiro da lareira. Isto à escala real!!! (a única vez que tinha ouvido falar em downburst foi quando, já há anos, um avião que se fazia à pista no Aeroporto de Faro foi subitamente projectado contra o solo. Alguns peritos responsabilizaram este fenómeno atmosférico pelo acidente.)

Depois desta caracterização tão exaustiva e tão bem feita pela Comissão Técnica, só lamento que nas conclusões apareça a falta de previsão e falta de planificação porque não têm razão de ser. Não havia saber de experiência feito pelo simples facto de não haver experiência. Foi inédito e além disso o gigantismo do incêndio foi tal que nem as estruturas nem os bombeiros estavam preparados para isso. Temo que as conclusões intempestivas do Presidente tenham feito a Comissão Técnica tropeçar nos sinónimos.

Mas também a Procuradoria foi tocada por essa magistratura de influência. Assim, numa ânsia reparadora, constituiu mais de uma dúzia de arguidos. Autarcas, bombeiros, agentes da protecção civil, enfim, está lá de tudo. Só não vi lá nem os incendiários nem aqueles que à revelia da lei levaram a mata até à berma da estrada e não desmataram o logradouro das suas casas.

“O Estado falhou” é expressão que não me ocorreu quando vi os incêndios na Austrália ou aquele na Grécia em que tiveram de resgatar as pessoas por mar ou ainda os da Califórnia. Na Califórnia, o Estado mais rico do País mais rico do mundo, a mata ardeu como cá. O fogo teve tanto desprezo pelas mansões dos actores de cinema como pelos casebres abandoados de Pedrógão. E o que vimos naquela parafernália de meios técnicos, que faz as delícias de qualquer bombeiro, não foi um helicóptero com um lato da água pendurado mas sim um avião de carga, quadrimotor, largando calda retardante. Pois de pouco lhe valeu. Será que aqui o Estado também falhou? (que fique pelo menos uma conclusão: o incêndio na mata não se combate. Dar mais meios aos bombeiros para este fim é um luxo e um luxo caro.)

Quando se fala no combate aos incêndios, fala-se sempre no ordenamento florestal e na dificuldade em o concretizar porque 97% da mata é privada. Poderemos assim dizer que o Estado falhou nos seus 3% porque no resto estava tudo bem?

Não me parece que o Estado tenha falhado assim tanto neste caso em apreço. Já quando vejo (para dar só um exemplo) um licenciado trabalhar nas caixas do hipermercado, aí sim, acho que o Estado falhou.

 

Manuel Vaz Pires