Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Vasco Fernandes Campos (n. Vila Flor, 1618)

PUB.

Nasceu e foi batizado em Vila Flor por 1618, sendo filho de Garcia de Campos e Leonor Henriques, ambos de Vila Flor. Criança ainda, seguiu para Castela com seus pais e dois irmãos. Viviam em Andújar quando o Vasco recebeu o crisma. O irmão mais velho, Pedro Rodrigues, casou já tarde, cerca dos 40 anos, e morava em Jaén, vivendo da mercancia. O outro irmão, Jusepe Henriques, foi casado com Marquesa Cardosa e morador em Jaén, falecendo em um desafio.

Em Jaén viveu também Vasco Fernandes e ali casou com Isabel Luís, nascida na mesma localidade. Tiveram 5 filhos, o mais velho nascido por 1647.

Por 1636 Vasco Fernandes e os pais viviam em Madrid. E então, numa das suas deslocações a Jaén onde vivia seu tio Manuel Henriques Valentim, este o terá doutrinado e introduzido no judaísmo. Vejamos a sua confissão, pois nos apresenta aspetos muito importantes para o estudo do marranismo e comportamento dos marranos:

— Seu tio lhe disse que as pessoas que viviam em Portugal e Castela não podiam observar (o judaísmo) porquanto a carne de vaca e carneiro que comessem se vende nos açougues e era morta contra a forma que mandava a lei de Deus de Israel; e procurou ensinar umas orações que havia de rezar e lhe disse que o nome que Deus mais se agradava era de Adonay, Dio de Israel, e que era uma só pessoa e que o verdadeiro batismo era a circuncisão e que se achasse em lugar próprio não deixasse de a fazer porque sem a circuncisão não era certa a salvação…(1)

Repare-se: em Portugal e Castela não podia cumprir-se a lei de Moisés e sem a circuncisão não havia salvação.

Fica implícito que, mais cedo ou mais tarde, todo o judeu devia procurar uma terra onde pudesse circuncidar-se e viver abertamente o judaísmo, cumprindo as regras da lei de Moisés, ou melhor, a lei de “Adonay, Dio de Israel”.

As mesmas certezas lhe foram transmitidas um mês depois por seu pai e, de seguida, pelo tio e padrinho de crisma Valentim Fernandes. E a verdade é que todos 3 agiram em consequência. Assim, o tio Manuel, pelo ano de 1645/6, deixou Castela e foi-se com a família para Livorno onde se fez circuncidar. O mesmo fez seu pai, pelo ano de 1657, o qual, na circuncisão, tomou o nome de Abraham. E o mesmo tinha feito o tio Valentim que, em 1650, vivia já em Bayonne, antes de rumar a Livorno. Àquela cidade francesa foi Vasco encontrar-se com ele e com ele celebrar a festa do Kipur.(2) Para além do tio, Vasco teve outros contactos de “edificação” e aprofundamento da lei judaica, devendo referir-se um Francisco Nunes de Leão “que fora a Holanda, de onde então vinha e se circuncidara e lia por uma Bíblia em castelhano e explicou algumas coisas”.

Enquanto o tio Valentim se abalava para Livorno, Vasco Fernandes regressou a Castela e, certamente em plano comercial de rede familiar, pegou na mulher e filhos e regressou a Portugal, fixando morada em Sendim, terra de Miranda do Douro, próximo da fronteira. A sua vida, porém, passava-se sobretudo nas alfândegas e nas feiras, como diria António Lopes Fernandes, mercador da vila de Muxagata que acrescentou:

— Sempre anda, de ordinário, de terra em terra, umas vezes assiste em Freixo de Espada à Cinta, outras em Vila Chã de Miranda, Porto, Entre Douro e Minho e no Alentejo e nestas partes fazia muita demora porque muitas delas eram de um mês, dois meses, três, e às vezes muito mais tempo…(3)

Por exemplo, no ano de 1655, desde 15 de julho até 9 de setembro andou pelas feiras do Alentejo. Enquanto isso, andando ele pelas “feiras, alfândegas e guindas”(4) e a família vivendo em Sendim, o filho mais velho tinha-o em Muxagata, hospedado em casa do mercador Gaspar Fernandes, a aprender as letras na escola da localidade.

Breve o mercador Vasco Fernandes Campos se fez conhecido “por ser homem de grosso trato” e por isso mudou a casa da família e a sede da sua empresa para a cidade do Porto, na Rua de Belmonte, assistindo ele por largas temporadas em Lisboa. O seu “trato grosso” era então baseado na importação de bocaxim de França, tafetás de Espanha, pólvora e panos de Holanda… com exportação de açúcar e tabaco que recebia do Brasil.

No seu processo desfila quantidade de mercadores Trasmontanos, como ele, estabelecidos no Porto e geralmente encontravam-se na “casa de jogo” de António Ledesma, oriundo de Bragança e que, na generalidade foram presos pela inquisição naquela vaga de 1658.

Relações especiais tinha-as Vasco com seu primos segundos Diogo e Francisco Vaz de Oliveira, de Freixo de Numão. Com o primeiro tinha mesmo a parceria de um armazém alugado e ao segundo estava devendo 345 mil réis, de fazendas que lhe forneceu.

De início, quando vivia em Sendim e ao chegou ao Porto, Vasco teve negócios com Francisco da Costa Henriques e seu sogro, António Henriques, naturais de Vimioso.(5) Depois desentenderam-se e passaram a inimigos capitais, com lutas e um processo judicial instaurado por aquele em 11.8.1656. Vamos contar, pois que o caso ajuda a entender as linhas do mundo comercial da época.

De Amesterdão, compradas por Vasco Fernandes, chegaram ao Porto 30 peças de sarjes dirigidas àqueles, no valor de 253 mil réis. Para além daquela fazenda, por ordem de Vasco foram entregues aos mesmos, por João Molendes, duas partidas de dinheiro no montante de 87 212 réis, por ordem de Vasco Fernandes. Comprometiam-se os de Vimioso a empregar aquele dinheiro e o procedido das fazendas em tabaco e açúcar que mandariam vir do Brasil. Obviamente que não trabalhariam de graça e receberiam a sua comissão.

Vasco deu ordem para que mandassem, por José Henriques Correia, uma carga de tabaco para Sendim. Efetivamente seguiu a carga de tabaco mas… ao fazer as contas, Vasco dizia que lhe levaram 2980 réis mais que o devido, já que o tabaco pesava menos 280 arráteis do que o faturado.

E vindo do Brasil 4 caixas de açúcar mascavado, Fernandes Campos encarregou Digo Vaz Oliveira de as receber. Só que, Francisco da Costa Henriques antecipou-se e levantou o açúcar, dizendo que lho enviara António Rodrigues Mogadouro.

Não sabemos como terminou o processo judicial instaurado por Vasco Fernandes Campos contra Francisco da Costa Henriques, nem isso é importante. Significativo é ver que um mercador que então estava estabelecido em Sendim e andava “de ordinário de terra em terra”, fazia compras e vendas em lugares distantes (Holanda, Porto, Brasil…) bastando a palavra ou um escrito e a identificação da mercadoria com um “selo e sinal”.

Nada era mais importante para aquela gente do que ser “mercador de muita verdade e consciência e muito verdadeiro em seus contratos” e a pior injúria seria de não dar contas certas, “chamando-lhe ladrão, pois retinha em si o que era alheio e que não era mercador nem pessoa de consciência”.

Resta dizer que Vasco Fernandes Campos saiu condenado em confisco de bens, abjuração em forma, penitências espirituais, cárcere e hábito perpétuo, no auto-da-fé celebrado em Lisboa em 17.10.1660.

Notas:

1 - Inq. Lisboa, pº 4603, de Vasco Fernandes Campos, tif 367.

2 - Idem, tif 368: — Porquanto se acharam em Bayonne de França e fizeram ambos o jejum do dia grande e naquela ocasião lhe declarou o dito seu tio Valentim Fernandes que se ia para Livorno e que sabia que na dita cidade estava o dito seu irmão Manuel Henriques, havendo-se circuncidado, e com efeito seu tio Valentim se passou a Liorne e ali vivia ao tempo da sua prisão, conforme notícia que teve…

3 - Idem, tif 325.

4 - Guindas eram postos da fronteira do Douro internacional onde, em boa parte do ano, não era possível atravessar o rio e a troca e as mercadorias eram passadas por cordas presas em ambas as margens.

5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, pp. 29-35, ed. Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, 2008.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães