NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Somos Douro – O Património Judaico

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Aconteceu há dias, em Torre de Moncorvo, na igreja da Misericórdia, (1) uma conferência sobre o tema, organizada pela CIM-Douro e proferida por Richard Zimler, autor de “O Último Cabalista de Lisboa”.  Congratulamo-nos com a iniciativa e achamos imperioso que se estude esse património. Na verdade o património judaico da região é muito importante e quase inteiramente desconhecido.

E sendo desconhecido e pouco estudado, nasceram algumas ideias e teorias erradas e contraditórias. Uns dizem, por exemplo, que foi o dinheiro dos judeus e cristãos-novos que pagou a construção das igrejas e dos palácios da região e que eles eram médicos, advogados, banqueiros, rendeiros e grandes mercadores, movimentando quase toda a economia.

Outros, ao contrário, baseados em estudos fragmentados, fazem afirmações estonteantes dizendo que 99% deles eram pobres e, dando como exemplo a comunidade de Belmonte, dizem que nela não encontraram um médico, nem um advogado, nem uma mulher que soubesse ler e escrever.

Por nós, baseados em cerca de 1 500 processos da inquisição, a grande maioria referentes a gente da nação trasmontana e duriense, diremos que, nem 8 nem 80 e que, embora a gente da nação seja, por natureza, universalista e errante, cada comunidade é um caso e em cada lugar eles se adaptavam às circunstâncias, derivadas da geografia e do clima, mas também da organização da sociedade, constituída por cristãos-velhos e cristãos-novos, gente da nobreza, do clero e do povo.

Assim, em terras onde abundavam serviços e funcionários públicos, como era o caso de Torre de Moncorvo, Bragança ou Vila Real, sobressaem médicos, advogados, cobradores de rendas e prestadores de serviços à casa real. E também à cúria episcopal de Miranda do Douro e às casas da nobreza: os Távoras em Mirandela e Mogadouro, os senhores de Sampaio em Vila Flor. Tinham verdadeiras cortes e os mais celebrados de seus cortesãos foram o Dr. Francisco da Fonseca Henriques, o célebre Dr. Mirandela e Maese António de Valença (2)  , o afamado físico de Mogadouro, ambos da etnia hebreia.

O que não encontrámos foi um único cristão-novo que fosse criado de servir. Encontrámos apenas uma viúva de Bragança, chamada Mariana de Santiago, pertencente a uma família da aristocracia que, vivendo em Lisboa caiu na pobreza e foi recolhida como serviçal, em casa de uns parentes. (3) De contrário, encontramos numerosos hebreus que tinham criados e criadas de servir em suas casas e jornaleiros cristãos-velhos a trabalhar em suas propriedades agrícolas ou industriais.

Por falar em propriedades, existe a ideia errada que eles desprezavam a agricultura. A verdade é que não seria bem assim. Olhemos para a veiga de Mirandela onde a cultura predominante era a do linho. Pois, o maior produtor era o cristão-novo Manuel Pereira da Fonseca, que, em 1693, colhia 360 pedras de linho, suplantando até a colheita dos Távoras. O mesmo concelho seria então o maior produtor de azeite. Pois, o primeiro lagar de azeite de que temos notícia naquela cidade, situava-se na Rua de Santo António e pertencia ao cristão-novo Manuel Mendes, o Bicho de alcunha. (4) Na região de Bragança abundavam lameiros e ganhava importância a pecuária. Também nisso investiam os da nação. Manuel Almeida Castro, (5)  por exemplo, possuía em Izeda um efetivo pecuário de cerca de 100 vacas e bois. Se formos ao planalto mirandês, onde a cultura cerealífera domina, vemos que as maiores tulhas e celeiros pertenciam igualmente a homens da nação. Sambade situava-se em meio da rota da lã e, naturalmente, a comunidade hebreia era constituída sobretudo por cardadores. Os de Chacim eram surradores e sericultores, morando aqueles nas bandas da ribeira que atravessa a vila e estes na zona alta e nobre da Praça. Falando em seda, não podemos esquecer Bragança onde a Rua Direita era uma verdadeira zona industrial com a generalidade das casas habitadas por cristãos-novos, dotadas de tornos e teares, ao nível do r/chão.

Cada comunidade é um caso e, como tal, deve ser estudada. Carção, por exemplo, foi uma comunidade de curtidores de peles, com os filhos a seguir o exemplo dos pais, no que respeita a carreiras profissionais, e também face à sociedade e à inquisição. Ao longo de gerações, ali viveram, resistindo em clandestina religiosidade, eles, os filhos e os netos. Por isso, Carção merece o título de capital do marranismo. Raros foram os que se decidiram pela fuga. Mesmo quando iam a Livorno buscar alguma bíblia e aprofundar os conhecimentos da lei mosaica, (6) eles voltavam a Carção, à casa e à atividade de seus pais e avós, enquanto na generalidade das terras, os surradores e curtidores queriam que seus filhos fossem mercadores ou torcedores de seda e estes educavam os filhos para serem médicos, advogados ou padres, em ascensão social gradativa.

Freixo de Espada à Cinta, ao contrário, era uma comunidade absolutamente instável. Poucos encontramos nascendo e morrendo na terra. Logo nos primórdios, vemos a inquisição prender Jerónimo Reinoso (7) e 3 filhos que viviam no Torrão (Alentejo) e João Garcia (8) morador em Vinhais. Branca Lourenço nasceu em Freixo e cedo se foi para Ferrara (Itália) onde viveu como judia com o nome de Isaca Rodriga. Viajou depois para Sevilha e ali se fez estalajadeira. São vários os prisioneiros da inquisição do México que falam desta estalagem onde se hospedavam muitos dos que a Sevilha iam embarcar para as Índias de Castela. Ali, um dos primeiros a chegar às minas de Tlalpujahua, por 1550, terá sido Tomás da Fonseca, nascido em Freixo, por 1620. No México o foi encontrar Pelayo Álvares, irmão da estalajadeira de Sevilha. (9) Por terras de mouros, entrando em mesquitas e sinagogas do norte de África, andava então o mercador freixenista cristão-novo António Fernandes. (10) Ele nos diz que das Canárias vinham pessoas em peregrinação a Freixo, à ermida da Senhora do Vilar.

Olhemos agora o Alto Douro onde, nos séculos de 500 e 600, a cultura do sumagre era verdadeiramente interessante. Sim, os sumagrais eram então mais rentáveis do que as vinhas, os olivais e os amendoais. A exportação de sumagre para os países nórdicos comparava-se à do vinho e, segundo  o historiador galego Lois Ladra, “nos primeiros três quarteis do século XVII, a importância económica das exportações do sumagre feitas através da barra do Douro, pesava muito mais que a do vinho”. Resta acrescentar que, a produção, comércio e utilização do pó de sumagre no curtimento das peles e preparação das solas corria sobretudo pelas mãos da gente dos hebreus. Um dos maiores produtores e exportadores de sumagre, nos anos de 700, chamava-se António Dias Fernandes, (11) natural e morador em Freixo de Numão, proprietário de 4 sumagrais, a quem a inquisição sequestrou entre 800 e 1000 arrobas de pó de sumagre, cujo preço variava entre 240 e 300 réis cada arroba.

Ainda a região vinícola do Douro não era demarcada, mas o vinho da região já seguia para as tabernas de Lisboa e do Porto. Morador em Maçal do Chão e assistente em Lisboa, Rodrigo del Cano (12) explorava na capital do Reino uma dezena de tabernas, para onde seguia quantidade de vinhos comprados em terras do Alto Douro. Bartolomeu Garcia, (13) com casa de morada em Vilarelhos, aldeia da Vilariça e casa comercial em Provesende, Sabrosa, era apenas um dos muitos mercadores cristãos-novos que, em barcos rabelos, faziam chegar ao Porto os vinhos do Alto Douro. Quando foi preso pela inquisição tinha uns 1800 almudes de vinho armazenados em Provesende, e no mês que antecedeu a prisão mandou para o Porto 30 pipas de vinho, no valor de 140 mil réis. Lamego era então a capital vinícola do Douro, a ponto de o vinho que hoje dizem do Porto, na altura era apresentado como “vinho de Lamego”. Heitor Mendes (14) era um cristão-novo natural de Gojim, casado com Branca Henriques, de Torre de Moncorvo mercador de vinhos, com armazéns estabelecidos em Gogim, Folgosa e Vila Seca, com um mínimo de 8 tonéis em cada um. A maioria destes vinhos era exportada para os países nórdicos, recebendo em troca barras de ferro e produtos manufaturados como fossem lanças e espingardas.

Em paralelo corria o comércio de vinagres e aguardentes. E aqui permitimo-nos falar de uma unidade industrial dotada com 2 alambiques grandes, valendo mais de um conto e duzentos mil réis, sita no Vale da Cabra, termo de Alijó. O citado António Dias Fernandes tinha a terça parte desta destilaria e dali exportava lotes de 40 pipas de aguardente para a Inglaterra, Lisboa ou Brasil.

Desçamos ao Baixo Douro, a Mesão Frio, aos anos de 1543, quando na cidade do Porto havia um tribunal da inquisição, presidido pelo bispo D. Baltasar Limpo que em Mesão Frio fez um dos primeiros e mais cruéis arrasos. Ali nasceu Branca Cardosa (15) que depois foi para o Porto, casar com Afonso Baeça, torcedor de seda. Era já viúva, quando foi presa pela inquisição, em 1569. Morava na Rua de Belmonte e, embora viúva, apresentava-se como uma dinâmica empresária que “tinha torno de seda e nisso se ocupava e ganhava a vida e dava que fazer a 50 casas do Porto”.

Desta família Cardoso-Baeça descende Miguel Cardoso (16) que foi, no Rio de Janeiro, o Administrador da Companhia Geral do Comércio do Brasil. E este Miguel Cardoso foi o bisavô materno de António José da Silva, o Judeu.

Terminamos com Jorge Luís Borges orgulhosos se em nossas veias correr uma gota de sangue judeu e muito honrados pela herança que recebemos dos nossos antepassados Sefarditas.

Notas:

1-Foi ali dito que esta igreja se construiu com o dinheiro dos judeus. Ignoramos onde foi colhida uma tal informação. Por nós, sabemos que “o recebedor do dinheiro da Misericórdia que se dava de esmola quando se fez a casa” foi efetivamente o hebreu Vasco Pires (pº 5118-L) e que um dos primeiros provedores terá sido o advogado hebreu André Nunes (pº 12301-L).

2-inq. Lisboa, pº 8232.

3-Inq. Coimbra, pº 8301.

4-IDEM, pº 7 106.

5-IDEM, pº 5496.

6-Foi o caso de Domingos Oliveira (pº 2865-C) e Roque Rodrigues (pº 7626-C).

7-Inq. Évora, pº 9527.

8-Inq. Lisboa, pº 883.

9-UCHMANY, Eva Alexandra – La vida entre el judaísmo y el cristianismo en la Nueva España 1580 – 1606, ed. Archivo General de la Nación, México, 1992.

10-Inq. Lisboa, pº 7815.

11-IDEM, pº 1437.

12-IDEM, pº 8410.

13-Inq. Coimbra pº 9619.

14-IDEM, pº 6907; pº 1901, de Branca Henriques: sabia bem ler e escrever.

15-IDEM, pº 241.

16-Inq. Lisboa, pº 17999.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães