NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Simão (Brandão) de Vivar (n. Mogadouro, 1637)

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O disfarce está intrinsecamente ligado à condição marrana. Convertidos à força, viam-se obrigados a disfarçar a sua fé mosaica, cumprindo as regras do cristianismo “para contemporizar com o mundo”. Ao menor deslize, arriscavam-se a ser presos. Pois, Simão de Vivar foi um verdadeiro mestre do disfarce. Vamos ver:
Terá nascido em Mogadouro pelo ano de 1637. Em data não determinada, talvez no seguimento da prisão de seus pais e uma sua irmã, fugiria para Castela onde logo trocou o sobrenome Brandão por Vivar. Isso não impediu que fosse preso na inquisição de Toledo em cujo processo ficou escrito:
- Simon de Vivar, vicino de  Mora,  y natural de Mogadoiro,   en el  reino de Portugal (…) en tres de Abril  de mil seicientos y ochenta,   fue preso  por delitos de judaismo  y en su primera audiencia  que con el se tubo declaro  llamarse como dicho  y  de ser  de la misma vecindad y naturaleza de edade de  quarenta y tres años, mercader de lienzos, hijo de Francisco Rodrigues,  natural y vecino de Mogadoiro,  y de Clara Rodrigues, natural  de la villa de Moncorvo,  neto de Gregório da Paz  y de Inês Rodrigues naturales de la vila  de Mogadoiro y de Jorge Fernandes e Inês Rodrigues naturales de Moncorvo,  casado con Francisca Lopes,  natural de Mascaraque,  deste arcebispado (…) sus padres fueren presos por la inquisición de Coimbra (…) foi desterrado por cuatro años  de Madrid, Toledo,  Mora,  Mascaraque,ocho leguas  en contorno , no lle passe a los puertos de mar  ni secos ,  sin licencia  de la inquisición  (…) y en  quinientos ducados.
Passados 23 anos, em agosto de 1703, Simão de Vivar foi preso pela inquisição de Lisboa. Interrogado sobre a sua genealogia disse várias mentiras e omitiu informações: a saber:
Que tinha 70 anos, o que fazia recuar a data de seu nascimento para 1733. Que seu pai se chamava D. Afonso de Vivar, cristão-velho, cavaleiro castelhano, natural de Sevilha. Que seus avós, assim paternos como maternos eram já defuntos e ele os não conheceu, nem sabe como se chamaram. Que não tinha irmãos nem irmãs. Na verdade tinha 2 irmãos e 2 irmãs. (2)
Obviamente que o objetivo de tais mentiras e omissões foi o de esconder dos inquisidores o historial de sua família, um historial muito comprometedor. E muito em especial a história de seu pai, Francisco Rodrigues da Paz que foi preso em 29.1.1649 e acabou queimado por judeu no auto da fé de 31.8.1650. (3)
De seguida, em 14.1.1651, foi presa a sua mãe, Clara Rodrigues, a sua irmã, Maria Brandoa e dois tios maternos: João Rodrigues Brandão e Francisco Brandão. (4) E agora repare-se na desfaçatez de Simão de Vivar que, perante os inquisidores de Lisboa declarou:
- Não sabe que parente algum seu fosse preso ou apresentado!
O mais estranho de tudo isto é que os inquisidores tivessem passado ao lado de todas estas falsas declarações, tendo à sua frente a certidão vinda de Toledo e tão organizada que era a máquina inquisitorial, no registo dos processos. Devemos explicar isto pelo muito trabalho que então se registava, com as inúmeras vagas de prisões que atulhavam a inquisição de Lisboa, com inúmeros cristãos-novos regressados de Castela? Talvez.
O regresso de Simão a Portugal aconteceria ao início da década de 1690. Vinha casado, com Violante Francisca Gomes, ou Lopes, cristã-velha, disse ele. O casal não tinha filhos e a casa de morada, em Lisboa, era no Beco da Mizarada à Rua dos Espingardeiros, uma zona bastante nobre da cidade. Tinham ao serviço uma criada, natural da Galiza e, a avaliar pelas pessoas com quem se relacionava, fica-se com a impressão de que Simão de Vivar era um homem de boa sociedade, muito bem relacionado com gente militar, do Estado-maior, inclusivamente. Dizia-se tratante, mas há quem o defina como contratador.
Sabemos que “fazia chocolate” mas não conseguimos definir os contornos da sua “empresa” e quem nela trabalhava. Porém, o essencial do seu “trato” era o negócio entre Portugal e Castela, especialmente comprando e vendendo fardos de tafetás. A rota costumada era por Campo Maior em cuja alfândega registava as mercadorias transacionadas e pagava os respetivos impostos. De Campo Maior era também o almocreve Manuel Fernandes que ele contratava para “lhe levar muitas vezes cargas para o reino de Castela”.
Em 23.8.1703, Simão foi metido na cadeia da inquisição de Lisboa, com base nas denúncias seguintes:
José Francisco, espingardeiro, seu vizinho em Lisboa, preso em Évora, contou que, falando em guerras, Simão lhe disse “que era tempo de vir o encoberto e de haver um só rei e uma só lei”.
Pedro Álvares, preso em Lisboa, disse que Simão de Vivar o informava a ele e sua mulher quando vinha o dia grande do mês de setembro, para o guardarem, explicitando:
- Há 3 anos, em casa dele confitente se achou com Simão de Vivar e Branca Cardosa, mulher dele confitente, e cunhados Heitor Dias da Paz e Clara Maria, estando os 5, por ocasião do dito Simão de Vivar lhes vir a dizer quando haviam de fazer alguns jejuns judaicos pelo decurso do ano e o mesmo Simão de Vivar lhes vir a dizer a casa quando caía o jejum do dia grande, e quando haviam de fazer outros jejuns judaicos e lhes disse o mesmo, haverá um ano, havia mandado um pouco de dinheiro para Holanda por via de João da Silva Henriques, que tinha lá seu pai e que o havia mandado pelo segurar em razão de que temia ser preso pelo santo ofício.
Esta era a acusação mais comprometedora pois o dava como conhecedor do calendário judaico e judeu praticante e como homem que temia ser preso e por isso se precavia mandando dinheiro para a Holanda, com o objetivo de fugir antes que o prendessem.
Foi vigorosa a defesa apresentada por Simão, conseguindo provar, por documentos da alfândega de Campo Maior que, no tempo da culpa, nem sequer estava em Lisboa pois “despachou a sua fazenda com que entrou para o reino de Castela em 24 de Março de 1700 e outrossim consta do livro das fianças fl 14v que entrou o réu Simão Vivar neste reino aos 7 de Outubro de 1700 e foi para a Corte da cidade de Lisboa, para despachar na Mesa Grande”.
Em simultâneo, lançou suspeitas sobre o denunciante Pedro Álvares dizendo que este lhe encomendara um carregamento de tafetás que ele foi buscar a Castela e despachou na alfândega e levou para sua casa. Porém, não se acertando no preço, Simão foi tirar-lhe a mercadoria, ficando a partir daí muito inimigos, pelo que o seu testemunho não devia merecer crédito.
Quanto à denúncia do espingardeiro, defendeu-se dizendo que “são inimigos do réu José António e seu irmão João Rodrigues, espingardeiro, em razão de lhe encomendarem que lhe trouxesse de Castela uns canos de espingarda e por ele réu não lhos querer trazer pelo risco que tem, lhe ficaram com grande ódio”.
A defesa e mais contraditas apresentadas por Simão Vivar são ainda muito interessantes do ponto de vista das suas relações com alguns cristãos-novos de Trás-os-Montes, muito conhecidos e deveras importantes do seio da comunidade sefardita da época, devendo referir-se os irmãos José e João da Costa Vila Real, (5) João da Silva Henriques e seu irmão Mateus de Sousa Henriques, (6) Francisco Soares da Fonseca, corretor do número, morador na Rua das Mudas, Manuel Henriques de Lucena, procurador da Casa dos Cinco…
Facto é que a sentença foi relativamente branda, pois que o processo foi despachado em Mesa e não em auto público da fé, condenado em cárcere a arbítrio dos inquisidores e pagamento de custas.
Notas e Bibliografia:
1-ANTT, inq. de Lisboa, pº 3677, de Simão de Vivar. Em tif 13 e seguintes apresenta-se uma certidão enviada pela inquisição de Toledo.
2-Irmãos de Simão de Vivar: Maria Brandoa, que foi presa com a mãe, pela inquisição de Coimbra; Ana Brandoa, casada em Vila Flor com Luís Vaz; António, nascido por 1633, que foi para Castela e Domingos, nascido por 1639.
3-IDEM, inq. Coimbra, pº 7397, de Francisco Rodrigues da Paz. Com ele foi preso o seu irmão Domingos Rodrigues Frade – IDEM, pº 9309.
4-IDEM, pº 3641, de Clara Rodrigues; pº 2231, de Maria Brandoa; pº 7395, de João Rodrigues Brandão; pº 6785, de Francisco Brandão. AFONSO, Berta – Subsídios para o Estudo da Comunidade Judaica de Mogadouro no século XVII. O processo de Maria Brandoa, in: Brigantia, Vol. V, 1985.
5-ANDRADE e GUIMARÃES – João (Abraham) da Costa Vila Real (1653 – d. 1729) e José (Isaac) da Costa Vila Real (1689 – 1730) in: jornal Nordeste, nº 1046 e 1047 de 29.11.2016 e 6.12.2016.
6-IDEM – De Sambade para Bayonne, Londres e Jamaica, in: Marranos em Trás-os-Montes Judeus-Novos na Diáspora, o Caso de Sambade, pp. 105 – 112, ed. Lema D´Origem, 2013.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães