Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Rodrigues Isidro (n. Torre de Moncorvo, 1576)

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O pai chamou-se João Rodrigues e pertencia a uma destacada família de cristãos-novos de Mirandela. (1) A família tinha, inclusivamente um padre – Sebastião Rodrigues, que se orgulhava do seu ofício e dizia que se fizera sacerdote para denunciar os que judaizavam.

Não menos importante, era a família de sua mãe, Beatriz Lopes, (2) natural de Torre de Moncorvo, filha de Vasco Pires do Castelo e sua mulher, Isabel Vaz. Esta faleceu bastante cedo, casando o Vasco em segundas núpcias, com Francisca Fernandes, (3) que faleceu na inquisição de Lisboa, denunciada exatamente pelo padre Bastião.

Manuel Rodrigues Isidro tinha 3 irmãos inteiros e um meio-irmão, repartindo-se a família por Moncorvo, Vila Flor, Vila Real, Porto e Castela. Aparentemente teria ligação mais estreita com seu irmão Vasco Pires Isidro. E quando Filipe III tomou posse e os cristãos-novos Portugueses começaram a negociar um terceiro perdão geral e a libertação dos prisioneiros da inquisição, foi lançada uma finta e, na comarca de Moncorvo, os fintadores foram os dois irmãos Isidro, sinal do seu grande prestígio e capacidade financeira.

Por outro lado, Vasco Pires era tesoureiro da infanta D. Francisca de Aragão, o que lhe abria muitas portas na Corte de Madrid. Assim, apoiados nestes conhecimentos e nos do primo tesoureiro do duque de Ossuna, os Isidro viveriam em Torre de Moncorvo com alguma ostentação de poder. E isso provocava certamente inveja e má vontade entre a classe da nobreza e dirigentes do clero, habituados a ser “os donos” da terra.

Muito em particular cresceram as desavenças entre Manuel Isidro e Francisco da Rosa Pinto. A tal ponto que, no dia 27.5.1599, na rua dos Sapateiros, Francisco da Rosa, acompanhado de Álvaro Falcão e Diogo Monteiro se lançaram em luta com Manuel Rodrigues Isidro, resultando que o Rosa lhe cortou um dedo da mão esquerda e tê-lo-ia morto se não fugisse para dentro de casa. Não satisfeitos, foram-se os três a casa do Castro, que morava na mesma rua e, pouco depois, eles e outros mais “armados de espadas, rodelas e cascos e ouras de antas e chuços, saíram de casa de Jerónimo de Castro e se trataram de alborroar as portas e certamente as casas por todas as partes para que ele suplicante não pudesse sair e o acabarem de matar (…) e o desonraram de nomes muito feios chamando-lhe cabrão, judeu (…) dando com as espadas e chuços nas portas…”

Manuel Isidro fez petição a Sua Alteza e… Francisco da Rosa Pinto foi preso.

Diogo Monteiro era o meirinho dos clérigos e lidava muito bem com o comissário da inquisição e vigário-geral da comarca, licenciado Gregório Rebelo de Abreu. Que melhor forma haveria de se livrarem do Isidro e lhe comerem a fortuna senão metê-lo na inquisição?! Trataram assim, de arranjar testemunhas que fossem jurar que ao sábado vestia camisa lavada e sem trabalhar, que comia carne em dias proibidos pela igreja e outros crimes semelhantes…

Só que Manuel Isidro foi sabendo dessas diligências e fez nova exposição a Sua Alteza contando o que se passava, que induziram testemunhas a jurar falso contra ele como foi uma Ana Rodrigues, a Cagança, de alcunha, manceba de Francisco da Rosa Pinto, a qual arregimentou outras mulheres “miseráveis e alcoviteiras e mulheres do mundo, vagabundas do seu corpo, que por qualquer coisa que lhe deem, dirão o que não sabem”.

Foi nomeado o Dr. António Cabral, da Relação do Porto, para investigar a natureza desses juramentos e desses conluios e, em consequência, foram condenados a prisão 8 ou 9 dos homens de mais evidência em Torre de Moncorvo. O caso tornava-se também complicado para o vigário-geral que tinha enviado as denúncias apresentadas pelo meirinho Diogo Monteiro para o Sr. Arcebispo e este para o tribunal da inquisição de Coimbra. Claro que o vigário Rebelo de Abreu se desfez em desculpas, dizendo que a informação não transpirou por causa do meirinho e que tudo resultava do facto de Manuel Isidro ter grande parte da gente da vila de Moncorvo na sua mão e, através de ameaças ou com dinheiro tudo comprar, até mesmo a justiça. Vejam um pouco da sua prosa:

- A gente da nação anda muito favorecida nesta terra e especialmente nesta vila, de alguns cristãos-velhos que vivem deles e com as valias e poder que têm, ainda que tenham culpas pode-se mal administrar e executar justiça contra eles porque deram agora em ameaçar testemunhas e espancar outras e peitar algumas (…) E vai o seu despejo em tanto crescimento que por denunciar Diogo Monteiro, meirinho deste auditório, de um Manuel Rodrigues Isidro e outros seus parentes, teve ordem no recuar (…) por não haver quem ouse testemunhar contra eles a verdade… (4)

Podemos concluir que em Torre de Moncorvo se vivia em autêntico clima de guerrilha e luta política, com a inquisição a ser considerada como palco privilegiado dessa luta, mais do que um tribunal da fé, como era suposto ser. 

Com aquelas prisões e o perdão geral, o ambiente de guerrilha terá esfriado. Aliás, os Isidro passariam a viver menos tempo em Torre de Moncorvo, com os seus negócios a crescer no Porto e em Madrid e as suas empresas a internacionalizar-se. A ponto de Vasco pagar mais de 200 mil cruzados/ano de direitos alfandegários quando, em 1613, tratou de mudar a residência para Madrid e Manuel Isidro já em 1599 pagava 100 mil.

Por 1616, Manuel tornou-se contratador dos impostos reais da comarca de Torre de Moncorvo e as dissensões com os homens nobres, ricos e da governança da terra ter-se-ão novamente agravado. E ele escreveu novas exposições dirigidas a el-Rei Filipe, denunciando tropelias e roubos de vereadores da câmara e outros detentores de ofícios e empregos reais.

E de novo, os seus inimigos da nobreza e clérigos e familiares da inquisição se meteram em campo, movendo-se por Lisboa e Madrid, até porque, então, foi nomeado um novo inquisidor-geral, que logo ganhou fama de ser venal e partidário, vendedor de empregos e favores, correndo rumores de sodomia com um cristão-novo. E foi então lançada pela inquisição de Coimbra uma enorme vaga de prisões entre a próspera comunidade mercantil hebreia da cidade do Porto, onde se contavam muitos amigos e parceiros comerciais de Manuel Isidro. As ondas da tempestade estenderam-se a Trás-os-Montes onde, entre outros, foi preso um Pedro de Matos, natural de Muxagata, morador em Lagoa de Morais. Este, no tormento, disse que 5 ou 6 anos atrás, passeando na praça de Moncorvo com Vasco e Manuel Isidro, se tinham declarado judeus.

Com este testemunho, algo duvidoso porque obtido no tormento, os inquisidores de Coimbra, acharam que não havia motivos para prender Manuel Isidro. No entanto a sua deliberação foi enviada ao conselho geral que, com o inquisidor-mor Fernão Martins Mascarenhas a presidir, decretou a sua prisão “com sequestro de bens”. 

Preso no dia 1.12.1618, Manuel Isidro, suportou os horrores da prisão durante 4 anos e meio, sendo pura e simplesmente absolvido e mandado soltar, sem qualquer abjuração, em 19.6.1623.

Na primeira e uma das poucas audiências que com ele tiveram, às perguntas dos inquisidores, respondeu simplesmente:

-Isso são falsos testemunhos de Pero de Matos! (5) – explicando que era seu inimigo por lhe ter lançado 400 mil réis de finta quando foi da recolha de dinheiros para pagar o perdão geral a Filipe III. (6)

De resto, o processo de Manuel Rodrigues Isidro revela-se de extraordinário interesse para o estudo da vida política e da sociedade Moncorvense da sua época. E não seria por acaso que, no tempo dos reis estrangeiros, a Torre de Moncorvo conheceu um extraordinário desenvolvimento no que respeita a obras públicas. O processo de Manuel Isidro testemunha a construção do telhado da igreja matriz e o chafariz Filipino e o topónimo de Rua do Cano constatam isso mesmo.

Manuel Isidro, quando saiu da prisão, tinha uns 48 anos. Mesmo sofrendo de gota e com a saúde abalada, ele ganhou forças para se dirigir a Madrid e reconstruir a vida interrompida pela inquisição. Aonde? Ficaria por Castela? Iria para algum sítio onde fruir de liberdade religiosa? A informação que temos (7) é que seus netos não sabiam que era feito do avô.

 

Notas:

1-Um membro desta família seria médico dos Távoras e do rei D. João V.

2-Um irmão de Beatriz Lopes chamou-se Diogo Fernandes e foi casar a Vila Real. E este foi o pai de António Fernandes Vila Real, tesoureiro do duque de Ossuna, governador de Navarra, em Castela. António Fernandes era casado com Jerónima Fernandes, sua prima, irmã de Manuel Isidro.

3-Inq. Lisboa, pº 12 663. 

4-Inq. Coimbra, pº 5151.

5-Inq. Coimbra pº 448.

6-Pedro de Matos até seria rico e, de repente, foi à falência. É que, como então se mudou para Lagoa de Morais, foi também taxado, em outros 400 mil réis, pelos fintadores da comarca de Miranda do Douro.

7-SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600-1670, Franz Steiner verjag Stuttgart, pp. 161-163.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães