Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Mendes Flores, o Bicho (n. Toledo, 1669)

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Terá nascido por 1669, em Vila Nueva de la Fuente, do bispado de Toledo, em Espanha. Dizia-se cristão-velho mas não sabia o nome do pai e da mãe, hesitava entre chamar-lhe Maria ou Francisca de Tunes. De avós e tios paternos nada sabia e da parte materna, indicou um tio que se chamava Alonso de Tunes, o qual era mercador em Toledo. E indicou outro que era padre, beneficiado na igreja de S. Nicolau da cidade de Toledo e comissário da inquisição. Porém, ele desconfiava que o padre Francisco, dito seu tio, era o seu pai, pelo carinho que lhe dedicava.
Na verdade, embora os inquisidores de Coimbra tivessem feito diligências, nunca se averiguou com certeza a paternidade e maternidade do réu, e menos ainda a pureza do seu sangue. Apenas ficou provado que existiam os dois irmãos e que o padre Francisco de Tunes nunca pertencera aos quadros da inquisição. 
Manuel Mendes terá vivido 4 anos na terra natal, sendo depois levado para Toledo, para casa do tio Alonso, onde se criou. Andaria pelos 8 anos quando foi para Madrid, e ali permaneceu uns 3 anos e meio, posto o que rumou a Salamanca. Tinha 14 anos quando veio para Portugal, fixando-se em Chaves. A sua vida era andar de feira em feira e certamente não lhe faltavam recursos financeiros. Quem estaria por detrás, abonando dinheiro e ajudando a dar rumo à vida deste jovem?
Facto é que, por 1687, contando apenas 18 anos, recebeu como esposa, em Mirandela, a Francisca Henriques, uma menina de 12 anos, de uma importante família cristã-nova, onde se destacavam um tio médico (Francisco da Fonseca Henriques) e dois advogados (António e Manuel Pereira da Fonseca), os três em serviço na Casa dos Távoras.(1) Claro que nada disto aconteceria por acaso e não seriam os lindos olhos do jovem a ditar o sucesso. Provavelmente o contrato nupcial e as andanças do jovem viriam a ser preparadas, de antes, pelas respetivas famílias, como era de uso. Possivelmente a família Furtado, de Trancoso, não seria alheia a tais negociações. 
Certamente que o casamento lhe abriu também as portas do Palácio e “Corte” que então governava metade da província de Trás-os-Montes e Alto Douro, sendo nomeado feitor da Casa dos Távoras,(2) o que, além dos proventos económicos, lhe dava muito poder, nomeadamente na contratação de operários e serviçais e na administração da justiça, em nome do Senhores Marqueses, tal como no recrutamento de soldados.
Cedo faleceram os pais de Francisca, de modo que o seu irmão, mais novo uns 5 anos, Gabriel Pereira da Fonseca,(3) foi viver para sua casa, criando-se com Manuel Flores, sempre apoiado pelos tios de Francisca. E quando se tratou de fazer as partilhas da herança dos pais, Gabriel vendeu a sua parte ao cunhado, por 150.000 réis. Nessa altura andaria estudando na universidade de Coimbra ou estaria já formado em medicina.
As propriedades em causa eram constituídas à base de olivais. E, já que falamos disso, deitemos uma olhada para a relação de bens que Manuel Flores apresentava:
O mobiliário da casa foi avaliado em 175.000 réis, um valor muito elevado, sendo constituído por mesas e contadores de pau-preto, cadeiras e bancos encourados, painéis com molduras douradas… não entrando nestas contas as roupas e os talheres, que disso sabia sua mulher.
A casa de morada, de dois pisos, com quintal anexo, partia com a capela do Dr. Luís Bernardo Melo Morais Sarmento e valia um conto de réis. Em frente, do outro lado da rua, tinha outra morada de casas, com adega, que valia 70 mil réis. Junto à Ponte tinha um palheiro, avaliado em 35 mil réis e, por cima do arco de S. António, tinha um lagar de azeite que devia ser monumental pois estava equipado com 3 casas de mós, de duas varas, e valia 250.000 réis.
De propriedades agrícolas, referência para uma dúzia de olivais e muitas oliveiras espalhadas, que todas valeriam cerce de 2 contos e 500 mil réis. Os sítios desses olivais, começando pela Quinta de Golfeiras, permitirá fazer um verdadeiro mapeamento da cultura olivícola em Mirandela ao início do século XVIII. Na Quinta do Gorrão, Carvalhais, avaliada em 200 mil réis, dominava o cultivo da vinha e, por isso, estava dotada com um lagar de vinho. 
Manuel Mendes ganhou a alcunha de Bicho, certamente porque a criação de sirgo e o negócio das sedas era atividade importante da sua casa. Para além das sedas, a sua loja, na Rua de Santo António, então a mais comercial da vila, estava sortida de “panos de reinos estrangeiros” e o “sortimento” avaliado em um conto e 600 mil réis.
Muito mais dinheiro, somavam as dívidas ativas. Destas permitimo-nos destacar as derivadas do fornecimento de fardas ao regimento do coronel António do Couto Castelo Branco, cujo montante ele não lembrava ao certo mas constava de um assinado do mesmo coronel. Dos fornecimentos às tropas do Conde de Sampaio, acontecido mais de 20 anos atrás, faltava-lhe receber 140 mil réis e do Conde de S. João, o montante da dívida ascendia a 800 e tantos mil réis.
Manuel e Francisca tiveram um filho, nascido por 1701, que batizaram com o nome de António Luís Flores, o qual foi casar a Trancoso, com Leonor Maria Furtado,(4) cuja mãe era natural de Toledo… 
A história da família de Francisca na inquisição era já longa, nomeadamente os seus pais: Gaspar da Fonseca e Isabel Antónia,(5) presos em maio de 1663. Novo sobressalto em agosto de 1706, quando foi preso o seu irmão, médico.  E, como cumprindo um fado de tragédia, em fevereiro de 1727, a inquisição de Coimbra levou presos Manuel Mendes e Francisca Henriques.(6)
Não vamos falar dos seus processos. Diremos apenas que abonando o seu comportamento cristão se mobilizou muita gente importante de Mirandela e que a sua defesa foi consequente. Os processos são sobremodo interessantes para o estudo da família, repartida por Trancoso, Chacim e outras terras trasmontanas, uma das famílias cristãs-novas mais importantes de Trás-os-Montes e Beiras. Embora fossem ambos postos a tormento, acabaram sentenciados em sala, com penitências espirituais.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães