NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Jorge Lopes Henriques (n. Miranda do Douro, 1610)

PUB.

A história de Jorge Lopes Henriques e seus ascendentes desenrola-se por todo o planalto Mirandês e raia de Espanha e prolonga-se pela diáspora de Livorno, em Itália. Os seus bisavós do Vimioso pertenceriam à primeira geração de cristãos-novos e a casa dos bisavós de Mogadouro “era a casa onde mais se conversava na dita vila alguma coisa de judaísmo que em nenhuma outra casa”– no dizer do mestre António de Valença. (1) Outros dirão que tal casa era uma verdadeira sinagoga onde não faltaria uma Bíblia escrita em hebraico, por onde liam o citado Mestre e Bernardo da Rua, explicando-a depois aos circunstantes. Chamavam-se estes seus ascendentes Francisco Vaz e Leonor Lopes.
Catarina Vaz foi uma filha de Francisco e Leonor, nascida por 1560 e que foi casar em Alcañices com Gonçalo de Castro, originário de Carvajal. Nesta vila castelhana da raia, ficou morando o casal. Pouco tempo ali viveram, uma vez que, em setembro de 1578, a inquisição de Valhadolid prendeu Gonçalo e Catarina veio fugida para o Azinhoso, com um filho ainda de colo. Para trás ficaram acusações de judaísmo contra ela, feitas não apenas pelo marido mas também por outros dos muitos cristãos-novos trasmontanos que foram presos na chamada “cumplicidade de Alcañices”. Tais acusações originaram a abertura de um processo em Valhadolid e um pedido de prisão de Catarina dirigido ao corregedor de Miranda do Douro. Metida na cadeia, e interrogada pelo provisor do bispado, este escreveu para Coimbra solicitando ordens. Naquela missiva, datada de 4.4.1580, dizia nomeadamente:
- Desta mulher de Mogadouro depende muito porque, se neste reino há judeus, devem estar na vila de Mogadouro. E lá assistiu também o autor desta apostasia e cumplicidade de Alcañices que se chama Luís Francisco, era de Mogadouro e é de crer que de onde saiu tal mestre não faltem discípulos. (2)
Outra filha de Francisco Vaz e Leonor Lopes chamou-se Beatriz Vaz e foi casar e morar em Vimioso com Jorge Pires. E estes foram os pais de Luís Lopes, nascido por 1565. Luís viveu algum tempo em Quintela de Lampaças, casado com Catarina Álvares, que lhe deu 3 filhos. Ficando viúvo, casou em segundas núpcias com sua prima Beatriz Henriques, do Azinhoso, indo o casal viver para Miranda do Douro, em uma casa da rua da Costanilha, avaliada em 60 mil réis. Eram lavradores remediados, que colhiam mais de 200 alqueires de trigo e outros tantos almudes de vinho e exploravam 22 colmeias. Luís era também curtidor, dispondo de “uma tinaria na ribeira, por cima da ponte” e uma dúzia de pelames. Ambos foram presos pela inquisição de Coimbra, em dezembro de 1618, saindo penitenciados no auto da fé de 29.11.1621. (3) Beatriz voltaria a ser presa, em setembro de 1643, acabando queimada no auto da fé de 25.6.1645.
Com a prisão de Luís e Beatriz ficaram ao desamparo os seus 3 filhos e 2 filhas. Joana era a mais velha e contava uns 11 anos, enquanto o Jorge andaria pelos 8. Sobre a juventude deste, pouco sabemos. Porém, cedo começaria a aprender a curtidor de peles e se introduziria no mundo dos negócios. Sabemos que mantinha especiais contactos com os irmãos Carvalho, de Mogadouro – Felgar e com Baltasar Lopes de Leão, natural de Mogadouro, com loja de mercador em Lisboa na Fancaria de Cima.
Casou em Carção, com Maria Lopes e na “capital do marranismo” estabeleceu residência. Viajava com alguma regularidade para Lisboa e Castela e na raia de Puebla de Sanábria tinha mesmo um irmão empregado como aduaneiro.
Quis o destino que na sexta-feira de 11 de dezembro de 1637, ele se encontrasse na aldeia de Quintela de Lampaças. Chegou ali pelas 10 horas, montado em uma “mula castanha escura” e parou à porta de Martim Rodrigues, “que trata em sabão”. (4) Na casa de Martim almoçou e depois foi com Pero Fernandes a ver “um aparelho de curtir, coisa que tinha que ver, e por lho terem gabado”. Foi também visto a entregar uma carta a Baltasar Dias de Leão, uma carta que vinha aberta e logo ali foi lida pelos dois, ocasionalmente passando na rua o abade da freguesia, Paulo Peixoto de Sá, que nisso reparou.
No domingo seguinte, à hora da missa, tinham planeado os agentes locais da inquisição prender 19 “judeus”, conforme fora ordenado pelo tribunal de Coimbra. Comandava a operação o familiar do santo ofício Lucas Freire de Andrade, irmão do inquisidor Cristóvão de Andrade Freire. Apesar de todo o cuidado e segredo, apenas foi possível prender 10 dos arrolados, tendo os outros 9 fugido. De imediato nasceu a suspeita de que alguém violou o segredo do santo ofício e os avisou que fugissem. E logo o abade de Quintela, Paulo Peixoto de Sá escreveu para Coimbra a contar o sucedido.
A carta do abade originou a instauração de um processo, sendo ouvidas várias testemunhas, todas assentando que fora Jorge Lopes Henriques que viera com uma carta a avisar os que eram de suas relações e iam ser presos. Também foi geralmente entendido que a carta fora trazida de Lisboa por um irmão de Jorge, dizendo-se que fez o caminho em 6 dias. Uma das testemunhas autuadas foi o abade de Sendas, comissário da inquisição, António Rodrigues da Costa que, casualmente, se encontrava em Quintela, de visita a um amigo, cristão-novo, chamado Francisco Rodrigues Sancho, que estava doente. Veja-se um pouco do seu depoimento:
- O dito Francisco Rodrigues Sancho e sua mulher Lucrécia Nunes disseram que um Luís da Serra e os mais que prenderam foram pouco venturosos e acautelados pois se deixaram prender e não fugiram, sendo que tinham tido aviso de Coimbra de como vinha ordem para os prender… (5)
Outra das testemunhas, Gonçalo Esteves, foi mais explícito na acusação a Jorge Henriques:
- Disse que ouvira dizer a Martim Rodrigues, homem da nação e a Leonor Lopes, mulher de João da Serra, a qual está presa e a Guiomar de Leão, mulher de Francisco Rodrigues Sinal, outrossim presa, os quais disseram “que bom juízo tiveram todos em vir um homem de Santulhão ou Carção, que lhe trouxera uma carta de aviso mas que bem pago fora pois todos lhe ajuntaram bastante dinheiro, mas não disseram o nome do homem nem donde vinha a carta.
O comissário Rodrigues da Costa ainda alvitrou que a fuga de informação teria acontecido com algum funcionário da inquisição de Coimbra e por isso aconselhou Lucas Freire a que falasse com o inquisidor seu irmão para se descobrir o criminoso.
Resultou que, em 31 de Março de 1638, Jorge Henriques foi preso em Carção pelo familiar Miguel Sousa Correia, de Bragança, o qual se fazia acompanhar de seu irmão Manuel e por um meirinho da correição. Chegado a Coimbra, o prisioneiro foi interrogado pelos inquisidores a quem ele contou uma história bem simples.
Contou que Baltasar Lopes de Leão, (homem a quem ele “serve”) mandou de Lisboa, por Luís Carvalho, uma carta com um documento de cobrança de 100 mil réis que lhe devia Francisco Rodrigues, o Sinal, de alcunha. Ele recebeu a carta em Mogadouro, da mão do dito Luís Carvalho, com a incumbência de ir Quintela de Lampaças cobrar a dívida. Como o Sinal não estava e lhe disseram que fora a Bragança, esperou que viesse. Como não vinha, foi falar com Baltasar Dias de Leão, cunhado do Sinal, mostrando-lhe a carta e procurando dele cobrar a dívida.
No final, “pareceu a todos os votos que estava bastantemente examinado (…) e que não havia culpa para ser preso o réu nos cárceres”. Foi mandado embora mas… teve de pagar as custas “da cavalgadura que o trouxe (2 400 rs), do homem que veio com ele (2 260 rs), do gasto de seu mantimento (400 rs) e diversos (176)”. Entenda-se que “diversos” significa certamente as cordas e grilhões com que o prenderam.
Deveremos, como os inquisidores, acreditar na história de Jorge Lopes Henriques? A verdade é que, regressado a Carção, logo se meteu em fuga para a cidade de Livorno, em Itália onde livremente podia praticar o judaísmo. E o mesmo caminho seguiram depois alguns de seus conterrâneos e de Livorno para Carção veio pelo menos uma Bíblia, que a trouxe Domingos Oliveira, um dos marranos de Carção queimados nas fogueiras do santo ofício. (6)
Notas:
1-TAVARES, Maria José Ferro – Para o Estudo dos Judeus em Trás-os-Montes no século XVI, in: Cultura História e Filosofia, vol. VI, pp. 371-417, Lisboa, 1985.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 268, de Catarina Vaz.
3-IDEM, pº 3497, de Luís Lopes; inq. Lisboa, pº 2115, de Beatriz Henriques. ANDRADE e GUIMARÃES – Jorge Lopes Henriques, de Carção, e alguns familiares processados pela inquisição, in: revista Almocreve, pp. 65-72, Carção, 2009; IDEM - Judeus em Trás-os-Montes – A Rua da Costanilha - Âncora Editora , 2015.
4-ANTT, inq. Coimbra, pº 8227, de Martim Rodrigues.
4-ANTT, inq. Coimbra, pº 3271, de Jorge Lopes Henriques.
5-ANDRADE e GUIMARÃES- Carção Capital do Marranismo - Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, Carção, 2008.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães