Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Abraham Israel Pereira (Vila Flor, c.1605-Amesterdão, 1699)

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Abraham Israel Pereira terá nascido em Vila Flor cerca de 1605 e falecido em Amesterdão em 1699.(1) Foram seus pais António Pereira, e Beatriz Jerónima, ambos de Vila Flor, que no batismo, lhe deram o nome de Tomás Rodrigues Pereira. Provavelmente, o casal Pereira terá fugido de Vila Flor, na sequência de uma enorme vaga de prisões lançada pelo santo ofício e coordenada pelo inquisidor/abade

de Vila Flor, Jerónimo de Sousa.(2)

Em Madrid, Tomás veio a casar com Beatriz Rodrigues, natural de Vila Flor, enquanto o seu irmão Duarte Pereira, casou com Ana Rodrigues, irmã de Beatriz. Estes dois irmãos ficariam ligados na atividade comercial e no percurso de vida.(3)

Da vida empresarial de Tomás Pereira em Espanha, sabemos que começou a trabalhar como administrador de salinas, passando à comercialização de lãs, que exportava especialmente a Holanda. Nisso amealhou uma enorme fortuna que, antecipadamente, conseguiu transferir para Amesterdão.

Para esta cidade foi também ele, por 1644, fugindo por Veneza, com a família, já então acrescentada com 5 filhos e 3 filhas. De Amesterdão continuou, porém a importar lãs de Espanha e, clandestinamente, faria entrar neste país quantidade de “velon” (moeda pequena e sem valor), em ação de sabotagem económica concertada com outros grandes mercadores judeus estabelecidos na Holanda e Inglaterra. Nestes tratos de importação/exportação, usaria o nome de Francisco de Gurre, e o irmão, António de Gurre.

Chegado a Amesterdão ter-se-á circuncidado aderindo abertamente ao judaísmo, adotando o nome de Abraham Israel Pereira e a mulher, o de Sarah Israel Pereira. 

Tomás integrou-se muito

bem na comunidade sefardita de

Amesterdão, breve se tornando figura principal e mais rica. Ao comércio e importação de lãs, acrescentou o seu tratamento e confeção de tecidos, tornando-se industrial de tecelagem. Em 1656 comprou uma tinturaria têxtil por 8 000 florins e tornou-se um importador de anil e pau-brasil, matérias-primas essenciais para o efeito. Meteu-se também no comércio do açúcar e obteve do governo de Holanda autorização para instalar uma refinaria, a primeira que houve naquelas paragens.

A Amesterdão de Israel Pereira era a mais cosmopolita da época e nela conviviam, em permanente disputa, cristãos, calvinistas, luteranos e judeus. Havia porém uma divisão profunda entre os judeus sefarditas, fugidos da inquisição e os asquenazes, corridos da Lituânia e da Suécia. Aqueles eram tidos por “judeus fidalgos” e estes por “judeus vagabundos”. Mesmo no interior da “nação sefardita” grassava uma profunda divisão, personalizada por livres-pensadores cujo expoente maior foi Baruch Espinosa e intelectuais ortodoxos como Oróbio de Castro.

Muitos dos que foram fugidos da inquisição ibérica viram-se confrontados com uma rigidez ideológica para que não estavam preparados e alguns sentiam-se tão longe do judaísmo ortodoxo, que melhor entrariam numa igreja católica do que na sinagoga.(4) Aliás, não seria por acaso que as autoridades rabínicas e os “hahamans” lançaram “hérem” (excomunhão) contra uns 80 membros da comunidade. E o sofrimento e a vergonha dos excomungados não custariam menos a suportar do que as cadeias da inquisição e os humilhantes “sambenitos”.

Tomás Pereira explicará mais tarde que, à chegada, ficou confuso com as exigências dos rabis, considerando-os mistificadores e que dava mais crédito aos livros profanos do que aos escritos rabínicos. Depois integrou-se na comunidade e passou a ser considerado judeu exemplar.

Foi um dos fundadores da yeshiva (espécie de seminário talmúdico) Tora Hor e o grande financiador da impressão de livros e textos religiosos, sob orientação do rabi Menassés ben Israel. Em 1659, juntamente com seu filho Jacob, financiou a fundação de uma yeshiva na cidade de Hebron, na Palestina. Fantástico: os Estatutos foram redigidos em português, significando isso que a yeshiva seria predominantemente frequentada e dirigida por judeus fugidos de Portugal. A sua influência foi muito para além de Hebron, contribuindo decisivamente para a formação de uma nova geração de “talmidins” (doutores da Lei) o que muito contribuiu para que a cidade de Jerusalém se impusesse, em termos demográficos e de cultura judaica.(5)

Como cidadão israelita exemplar, mandou escrever na fachada principal da sua fábrica esta frase: — Defende-me ó Deus, porque eu procuro em Ti o meu refúgio. E também escreveu dois livros com o objetivo de incentivar os seus concidadãos ao aprofundamento das crenças e práticas da lei de Moisés. Veja-se, a propósito, uma curta citação, extraída do seu livro La Certeza del Camino:

— Estou profundamente chocado, pois considero a religião que alguns professam, de fachada e só se dizem judeus por conveniência pessoal. Valores como a caridade e o amor do próximo perderam-se e o arrependimento deu lugar à arrogância.(6)

Por aqueles anos de 1655/56, o mundo judaico foi abalado por uma nova extraordinária: o aparecimento do Messias, Sabbatay Tsevi, que se fixou em Gaza, Palestina, onde o já então famoso cabalista, Nathan de Gaza, o reconheceu como o Messias verdadeiro e iniciou a pregação da mensagem.

Amesterdão, a Jerusalém do Norte, era então a capital mundial do judaísmo e o impacto da notícia foi enorme. Nada se podia opor à vaga de euforia que tocava os corações dos judeus. Cada um tentava rivalizar com o outro em penitências, orações e jejuns. As casas de jogo transformaram-se em casas de estudos bíblicos e recolha de esmolas. As sinagogas nunca se esvaziavam e estavam abertas 24 horas por dia. Todas as candeias e lâmpadas, nas sinagogas e nas casas particulares ficavam acesas. O rabi Sasportes era um dos raros sefarditas de Amesterdão que não acreditavam no Messias Sabbatai. O seu relato, embora de crítica, retrata o ambiente descrito:

— Os judeus entregam-se a grandes manifestações de alegria, tocando os seus tambores e dançando pelas ruas; os rolos da Torah foram tirados da Arca para uma procissão, com todos os ornamentos, sem atentarem no perigo das invejas e do ódio por parte dos gentios. Pelo contrário, anunciavam publicamente a boa nova.(7)

Mais do que ninguém, Abraham Israel Pereira foi tocado pela mensagem messiânica de Tsevi, até porque ele tinha e sustentava a yeshiva de Hebron e logo decidiu mudar-se para ali, ao encontro do Messias, “depois de ter pedido licença aos magistrados e expressado o reconhecimento pelos favores de que ele e a sua família tinham beneficiado”, não sem antes se dirigir ao rabi Sasportes, admoestando-o e pedindo-lhe que deixasse de expressar publicamente as suas dúvidas acerca de Sabbatai.

Encontrava-se em Veneza, a caminho da Terra Santa, quando recebeu a notícia de que Sabbatai Tsevi se encontrava na Turquia e se tinha convertido ao islamismo e os rabis de Jerusalém tinham lançado “hérem” sobre Nathan. Imagina-se a desilusão de Pereira que, de imediato, deixou Veneza e regressou a Amesterdão. Retomou os negócios e afervorou a crença. Disso mesmo nos dá conta um segundo livro que escreveu, intitulado “Espejo de la Vanidad del Mundo, estampado no ano judaico de 5431 (1671).

Recuperou toda a influência e prestígio social. Prestígio e influência tiveram também os seus filhos, especialmente Jacob Israel Pereira (1629-1692) que, associado a António Álvares Machado, na firma Machado & Pereira, foram fornecedores de géneros aos exércitos holandeses na guerra com a França. O mesmo aconteceu na campanha de Guilherme III na Irlanda, que exigiu aos Machado & Pereira a contratação de 28 padeiros, 700 a 800 cavalos e 300 a 400 vagões.(8)

Mais rico do que Jacob, seria o seu irmão Moisés que, por 1685, pagava de “finta” à “nação” 120 florins e ocupava lugar de destaque entre os 11 magnates financeiros da Academia dos Floridos.(9)

Notas:

1 - ALMEIDA, Marques – Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses Mercadores e Gente de Trato, pp. 549/550, Cátedra de Estudos Sefarditas de Alberto Benveniste, Campo da Comunicação, 2009.

2 - TSO-Conselho Geral, Papéis Avulsos, mç. 7, n.º 2535. Neste documento referem-se 105 pessoas, além das crianças não contabilizadas, fugidas de Vila Flor nos 7 anos que seguiram a 1583. Da lista consta um António Pereira e sua mulher.

3 - SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600-1670, pp. 142, Stuttgard, Steiner Verlag, 1994.

4 - MÉCHOULAN, Henry; MICHEL, Albin – Être Juif a Amsterdam au Temps de Spinosa, Paris, Albin & Michel, imp 1991.

5 - NAHON, Gérard – Métropoles et Périphéries Sefarades d´Occidente, pp. 206: — La yeshiva de Jacob Pereira fut un facteur efficace de l´extraordinaire explosion démographique et rabbinique de la Jerusalém des Lumières.

6 - La Certeza del Camino foi impresso na tipografia de David de Castro Tartas, um cristão-novo originário de Bragança, que tomou aquele sobrenome por ter nascido na cidade francesa de Tartas quando seus pais fugiram da inquisição. O ano de impressão foi 5416, do calendário judaico, ou seja o ano de 1656, da era cristã.

7 - SASPORTES, Jacob ben Aaron – Tzitzat Novel Zvi, obra editada em 1737 por seu filho Abraham Sasportes. Trata-se de um conjunto de textos contra Sabbatai Tsevi e seus seguidores.

8 - SWETSCHINSKI, Daniel M. – Reluctant Cosmopolitans. The Portuguese Jews of Seventeenth Century Amsterdam, pp. 15-17, 138-‑140 e 193, London, The Littman Library of Jewish Civilization, 2000.

9 - BLAMONT, Jacques – Le Lion et le Moucheron Histoire des Marranes de Toulouse ,pp. 396, Editions Odili Jacob, Paris, 2000.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães