Lembranças com cheirinho a fruta e flores da moda

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Há coisas que, com o tempo, começam a parecer-nos como aquelas embalagens de óleo corporal de usar no banho - com o uso, o rótulo começa a encaracolar nas pontas, o que nos leva a desconfiar da integridade do conteúdo. Temos sempre a opção de retirar o rótulo. Arrancar tudo de uma vez. Mas depois fica a dúvida. Será que deixarmos de ver o rótulo nos vamos esquecer do que está dentro do frasco? Que vamos deixar de saber que se deve usar com a pele molhada? Então optamos por deixar tudo como está, até que, eventualmente, acabe por cair sozinho. E aí não sentiremos qualquer culpa, porque não tivemos responsabilidade no que aconteceu. Obviamente que algumas coisas são mais do que um frasco de loção para o corpo. Quando muito, seriam uma loção para alma. E mesmo que ficassem desbotadas e não tão bonitas como no início, certamente não seria motivo para descartar. O que é certo é que o tempo tem o poder de apagar, ou pelo menos, acalmar. Tudo. O tempo dissolve as coisas. O que dói fica só a ser um sentimento pequenino de incómodo, como uma cicatriz de uma ferida em que tivemos que levar pontos. O que era uma euforia transforma-se num sorriso agradável de uma lembrança boa. O que não teve importância fica difuso ou omitido. As dores, os desejos, as alegrias. Tudo começa por ser um frasco de loção muito bonito, com óptimas características. Até que a água quente dos banhos vai transformando, em algo que, apesar de ter a forma inicial, já não é o mesmo. Mas há coisas que a memória teima em guardar. Como aqueles sabonetes especiais que nos dão nos anos e que ficam para uma ocasião especial, que nunca chega. Mas ficam lá. Intactos. Vamos limpando o pó, colocando num sítio mais à vista, não vá surgir uma oportunidade de finalmente usar. Já outras memórias são como um incêndios de grandes dimensões que precisasse de vigilância constante. Porque basta uma faúlha para tudo voltar a arder, e às vezes até com mais intensidade. O que não esquecemos é aquilo que nos marca, às vezes sem o sabermos. Porque, de algum modo, prende as nossas energias. Para o bem e para o mal. Pensei em tudo há uns dias enquanto fazia mira ao meu óleo corporal com cheirinho a fruta e a umas flores da moda. Está a mais de meio, e começa a descascar. Depois, quando acabar, gosto tanto que vou comprar uma embalagem novinha em folha. E vou esquecer-me de quantas embalagens tive daqui a algum tempo. As memórias também ficam em tantas embalagens que deixamos de nos lembrar delas. A forma, do tamanho. Mas elas estão ali. Não sabemos quantas são. Todos os dias vão crescendo e acumulando. E vamos armazenando. Vão mudando de forma, de feito, até de cor. Mas, um dia, esses frascos vão começar a cair das prateleiras. Vão começar a partir-se à nossa frente e a libertar o seu conteúdo. Algumas poderão ser deliciosas. Outras dolorosas. Outras, uma surpresa. E se as memórias não param de nos assaltar, podemos dar-lhe uma nova forma, como a embalagem sem rótulo mas totalmente funcional. Ou podemos ir mais longe e criar novas memórias ligadas às memórias que já temos. Porque, afinal, se que nos continua a assaltar o pensamento é porque não pertencem ao passado.

Tânia Rei