Judeus. Judeus em Belmonte

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Eu não sei se algum leitor tem lembrança das «aulas» de catequese nos claustros da Sé, da Praça onde anos mais tarde a rapaziada engodava o tempo enquanto observava e atirava parvoíces, piadas e dichotes as raparigas a colorirem o passadiço fizesse chuva, frio ou calor.
Eu recordo-me da alacridade reinante, do ar imponente do então Padre Luís Afonso Ruivo e de algumas catequistas.
Nos intervalos corríamos todas as partes do claustro, numa das paredes, atrás do gradeamento, uma pungente imagem do Senhor da Cana-Verde contemplava-nos. E, nós parados, também olhávamos Jesus e um de nós afirmava terem sido os judeus os culpados de Ele apresentar tão lastimoso estado.
À saída da catequese afoitos ou não, estúpidos sim, passávamos em frente de uma oficina de sapateiro existente na Rua Direita e gritávamos: judeu, judeu. A arruaça podia prosseguir na Rua Abílio Beça. Não me perguntem sobre o princípio da injúria, nem como sabíamos onde ficava a desactivada Sinagoga, muito menos o uso de termo judeu quando queríamos qualificar maldosamente este ou aquele. Era assim.
Longe de ter lido Mendes dos Remédios (curiosos apelidos), nem o Abade de Baçal e Leite de Vasconcelos, só para referir os de maior saliência no saber sobre os judeus de Trás-os-Montes ainda agora, menino tamanino ficava zangado quando me chamavam judeu na sequência de ter cometido alguma falta.
E, chegada a idade de adquirir princípios e noções sobre os valores universais, passei da curiosidade a interessar-me por tudo quanto respeita à civilização judaica na sua matricialidade, irradiação e construção de realizações artísticas, científicas, culturais e técnicas debaixo do postulado religioso ético e moral.
Por assim ser na próxima deslocação a Bragança irei ao novel equipamento cultural dedicado aos judeus em geral e à comunidade sefardita bragançana em particular, pedindo, novamente, desculpa pelos dislates gritados ainda fedelho de nove ou dez anos.
                                            
                                       Judeus em Belmonte
Nos alvores deste ano a Âncora Editores ofereceu-me a obra O Judaísmo em Belmonte no Tempo da Inquisição, da autoria de Jorge Martins. O Editor conhecendo o meu interesse pelo tema e das investigações que tenho realizado no domínio da História da Alimentação, concedendo particular atenção às usanças alimentares judaicas.
Ora, os trabalhos deste empenhado historiador têm-me facilitado informações relativas ao que procuro, as quais estudo, comparo e contrasto com outras de autores portugueses e estrangeiros levando as indagações a separar o trigo do joio (existe joio repetido) no tocante aos costumes culinários uns de forma deliberada, outros de maneira forçada.

Nesta obra, como noutras, é nas forçadas confissões que os atormentados e atormentadas explicam detalhadamente as práticas alimentares, as matérias-primas transformadas em comida e o modo de a conservar quente e em condições no decorrer da observância da não realização de trabalhos aos sábados. 
Historiadores espanhóis defendem argutamente a ideia de a adafina ser base do conhecido cocido (cozido) o qual em Espanha, tal como em Portugal é apresentado debaixo de centenas de expressões, assim ao modo de cada roca com seu fuso, cada terra com seu uso, quer dizer cozido. Os leitores sabem bem do que falo.
Já na obra POPES, PESASANTS, and SHEPHERDS, de Oretta Zanini de Vita, a vila de Belmonte é referenciada como importante entro judaico, salientando produtos, e na CHARLEMAGNE’S TABLECLOTH, de Nichola Fletcher, encontramos referências aos comeres judaicos de antanho a indiciaram pistas referentes à Península Ibérica.
Ora, este trabalho de Jorge Martins é novo e importante contributo no tocante a melhor entendermos as vicissitudes dos judeus para cumprirem os preceitos alimentares contidos no TALMUDE, em terras onde campeava a intolerância escorada na inveja, no obscurantismo e na sórdida avidez de tomar os bens dos acusados de judaísmo.
O revigoramento do interesse pela cultura judaica no âmbito das usanças culinárias e gastronómicas não podem ser desligadas do miolo teleológico, onde os agravos, as inquietações, as perseguições, a tortura e a morte, não impediram, nem impedem, de dentro dos preceitos talmúdicos a construção de criações culinárias fluorescentes fruto da sua milenar história, das incorporações decorrentes da continuada peregrinação de país para país, e prioritariamente devido talento e perspicácia das mulheres, notáveis Mestras cozinheiras.
Árvores genealógicas, estatísticas, gráficos e mapas ajudam à compreensão de um universo comunitário obrigado ao segredo dos segredos, a permanecer no casulo, mas segundo o autor a legitimar “a tese de que a actual Comunidade Judaica de Belmonte tem a ascendência secular belmontense.”
 

Armando Fernandes