Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (5) - Branca Rodrigues, uma conjurada

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Herdou o nome da sua avó paterna e tinha uns 7 anos quando aconteceu a cena da prisão de Lopo Machado, protagonizada pela mesma avó e por seu pai, Luís Henriques Julião, com a ajuda de vários outros cristãos-novos de Vila Flor.

Lopo Machado era um executor do santo ofício e, por isso, a sua prisão e a forma como foi executada, constituiu um crime contra o tribunal da fé. Em consequência, em 23.12.1744, os inquisidores de Coimbra assinaram um decreto dizendo:

— Pareceu a todos os votos que eram as culpas bastantes para serem presos nos cárceres do santo ofício, os seguintes: Luís Henriques e Rodrigo Fernandes, filhos de Julião Henriques; Branca Rodrigues, mulher do dito Julião Henriques e que só a dita Branca seja presa com sequestro de bens, visto ter culpas de judaísmo. E à maior parte dos votos pareceu que também fossem presos nos cárceres do santo ofício Rodrigo Fernandes, tio dos ditos Luís Henriques e Rodrigo Fernandes; Francisco Vaz Ganâncias; Jerónimo Guterres, o indiano; Jorge Fernandes, filho de Henriques Dias; e Manuel, neto do dito Henrique Dias, e sem sequestro de bens, visto serem todos cristãos-novos e acharem-se presentes à prisão de Lopo Machado, que se fez em ódio ao santo oficio, de que houve escândalo em Vila Flor, aonde se fez, e para isso se passe mandado.(1)

Quando a ordem de prisão chegou a Vila Flor, já Luís Henriques e o Rodrigo Fernandes se teriam abalado para os lados da Galiza, pelo que não foram presos. Sê-lo-iam 10 anos mais tarde, quando Luís Henriques vivia em Castro Laboreiro, na raia da Galiza, com sua mulher Filipa Dias.(2)

Nos anos que seguiram novas investidas da inquisição aconteceram em Vila Flor. A maior de todas foi ao início de novembro de 1664, com a prisão de uns 35 cristãos-novos que foram metidos a ferros durante alguns dias na casa da Misericórdia. Entre esses prisioneiros estava Branca Rodrigues, filha de Luís Henriques Julião, e o seu marido.(3)

E ela e outros teriam combinado denunciar como judeus declarados os homens da nobreza de Vila Flor e outros cristãos-velhos que mais ativos e interessados se mostraram, ao serviço da inquisição, prendendo-os e arrematando-lhe os bens sequestrados. Com tais denúncias, conseguiriam que a inquisição prendesse os seus próprios servidores, em Vila Flor.

A responsabilidade maior desta “conjuração” seria atribuída a Diogo Henriques Julião que, depois de sair da cadeia da inquisição de Coimbra, se foi para Castela. Ele teria arquitetado o plano e pago a outros “conjurados” que fossem a Coimbra apresentar-se e denunciar também homens e mulheres da nobreza de Vila Flor, incluindo cristãos-velhos.

Voltemos à filha de Luís Henriques, Branca Rodrigues que seria levada pelo pai para a cidade galega de Pontevedra, onde viveu até aos 18 anos, mudando-se depois para Orense, onde permaneceu 3 anos, posto o que regressou a Vila Flor, ao findar da década de 1650, para casar com João Lopes Henriques, o surdo. A casa de morada do casal situava-se na rua da Igreja e confrontava de um lado com a da Romana e do outro com a do Panistro, duas pessoas cristãs-novas, também com historial na inquisição de Coimbra.

Quando o João e a Branca foram presos, em novembro de 1664, deixaram 4 filhos, o mais velho de 5 anos e o mais novo de meio ano. Imagina-se o drama destas crianças, assim deixadas ao abandono, já que a própria casa de morada foi fechada e selada.

Não vamos aqui seguir o processo de Branca no tribunal de Coimbra. Diremos apenas que logo de início ela confessou os seus erros e denunciou muitos companheiros. E denunciou falsamente várias pessoas da nobreza da terra e cristãs-velhas, que, em seguida, foram igualmente presas, juntando-se nas celas de Coimbra. António do Sil Morais, homem nobre, da governança da terra, foi um dos denunciados por Branca. Veja-se um pouco da denúncia:

— Disse que há 5 anos e 8 meses, porque era Junho, em Vila Flor, em casa de António do Sil Morais, que tem parte de cristão-novo, não sabe quanta, por via paterna, que vive de sua fazenda, casado com Maria Aguirre, que tem parte cristã-nova, não sabe quanta nem por que via, se achou com ela e com (…) E depois de merendarem perguntou o dito António do Sil a ela confitente e às mais mulheres hóspedes se sabiam elas a causa por que as havia convidado naquele dia com semelhante merenda. E respondendo elas que não, tornou o mesmo António do Sil a dizer que dera de fazer aquela merenda e comerem todos, por festa e lembrança da vitória que em semelhante tempo alcançou o povo de Israel do capitão Holofornes, por meio da famosa Judite, que lhe cortou a cabeça, fazendo naquela ocasião, assim ela como os mais do povo judaico grandes festas e banquetes, tendo o ditos António do Sil e mais homens da companhia acerca daquela história larga prática e disputas, por serem homens discretos e lidos, e em esta ocasião se declararam como criam na lei de Moisés…

Certamente que o testemunho de Branca foi decisivo para a prisão de António do Sil, em fevereiro de 1667. Tal como o que prestou acerca de Francisco Montes Almeida e vários outros homens da nobreza da terra, que foram presos ma mesma ocasião. E para encerrar esta análise de falsas declarações de Branca Rodrigues, naturalmente concertadas com outros cristãos-novos, veja-se esta onde o visado foi um mercador que ajudou na prisão dos cristãos-novos:

— Haverá 5 anos (…) Passando pela porta de Gaspar Leitão, marcador, cuja qualidade não sabe, casado com Maria Vaz, meia cristã-nova, chamaram estes da sua janela rogando que subissem para a dita casa, como com efeito fizeram, e estando todos 9 os convidou a dita Maria Vaz com passas, amêndoas e confeites, que comeram; e logo a dita Maria Vaz trouxe à mesa um açafate cheio de bolinhos de pão asmo e que também convidou a ela confitente e às mais pessoas da companhia, desculpando-se de lhes não dar maior porção deles, porque tinha outras pessoas da nação com quem repartir; e nesta ocasião se declararam como criam na lei de Moisés.

Terminou o processo com Branca Rodrigues a ser recebida na santa madre igreja, com cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 13.2.1667. Regressou a Vila Flor, vestida com o sambenito, que lhe foi tirado em 6.12.1670, pelo comissário do santo ofício em Torre de Moncorvo, o licenciado António Saraiva de Vasconcelos.

Nas masmorras de Coimbra ficaram a penar os nobres de Vila Flor, falsamente acusados por Branca e outros “conjurados” cristãos-novos. Só que… os inquisidores acabaram por descobrir a “conjuração” e Branca Rodrigues foi de novo mandada prender, em 17.4.1671, juntamente com outros 16 conjurados, por declarações falsas, destinadas a “perturbar o recto procedimento do santo ofício, ofendendo os seus ministros, dando-lhes ocasião a proceder contra pessoas inocentes, para que se possa entender que do santo ofício tudo é falsidade”.

A esta altura Branca era já viúva e, metida na cadeia, logo reconheceu que mentira. Sobre o testemunho transcrito contra António do Sil disse que a cena aconteceu em casa de Lopo Fernandes e não em casa de António Sil e nem este nem a sua mulher, Maria Aguirre, participaram.

Igualmente revogou as denúncias que fizera contra as outras pessoas da nobreza e cristãs-velhas e que foram: António Rodrigues, ferrador; Catarina Álvares, sua mulher; Maria Álvares, filha destes; Domingos Vaz, marido da anterior; Gaspar Leitão, mercador; Francisco Montes de Almeida; Joana Borges; Pedro do Sil Morais; Domingos Lopes Bastos e Ângela Lemos.

Branca Rodrigues saiu no auto-da-fé celebrado em Coimbra em 12.3.1673 levando “carocha com rótulo de falsária e sendo açoitada pelas ruas públicas da cidade”, condenada em 7 anos de desterro para o reino de Angola.

Raramente saíam barcos de Lisboa diretos para Angola. Mais frequente era a ligação feita através do Brasil. Foi o caminho seguido por Branca que, em julho de 1675, se encontrava na cadeia da cidade da Baía, “padecendo grandes misérias e achaques e não pode ganhar para comer, por ser muito falta de vista, incapaz de ser remetida para Angola e tem 3 filhas donzelas e 2 meninos sem amparo algum”. Pedia, por isso, aos senhores inquisidores que a mandassem libertar e lhe deixassem cumprir os 7 anos de desterro na Baía. Foi atendido o pedido e por lá ficou Branca Rodrigues cumprindo a pena.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 6861-C, de Rodrigo Fernandes Portelo.

2 - Idem, pº 1093, de Luís Henriques Julião. Preso em 14.5.1656, saiu no auto-da-fé de 23.5.1660, condenado em cárcere a arbítrio, degredo por 2 anos para Castro Marim, pagamento de 20 mil cruzados.

3 - Idem, pº 1522, de Branca Rodrigues; pº 4888, de João Lopes Henriques.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães