Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (2) - Vila Flor: Julião Henriques e Lopo Machado

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Foi no 1.º de setembro de 1644, já a noite fechava. Lopo Machado Pereira, montado no cavalo, entrou em Vila Flor, pela porta sul, seguindo pela Rua da Fonte.(1) À porta de Julião Henriques, um grupo de “30 homens, embuçados e arrimados às paredes, com suas armas, pegaram nele e o deitaram do cavalo abaixo”. Os mais ativos eram os filhos de Julião: Luís Henriques e Rodrigo Fernandes, que o seguravam, enquanto a mãe, Branca Rodrigues, com um uma tocha feita de palha, lhe iluminava o rosto para que todos vissem e bradava:

— Ah! Ladrão! Agora pagarás as prisões de meu filho e meu marido que mos tens presos falsamente! (2)

A notícia correu a vila, e num ápice, todo o povo se juntou. Escândalo tremendo! O homem de mais poder na terra, o fiel executor das ordens do santo ofício, preso e agrilhoado pelos “judeus”!

Gonçalo Ribeiro Teixeira, um homem da nobreza, foi dos primeiros a chegar e, em companhia de Jacinto Machado, filho de Lopo, correram “a casa de Francisco Sampaio, fronteiro, filho do senhor desta vila, dando-lhe conta como tinham preso a seu pai”. O “fronteiro” mandou o ouvidor averiguar. À vista da ordem que Luís Henriques lhe mostrou para ler, voltou para casa a dar conta a seu amo, que nada podia fazer, que a prisão fora ordenada pelo corregedor da comarca, representando a justiça d´el-Rei.

Apareceu também Agostinho Valente Pinto, homem nobre, que então desempenhava as funções de juiz. Luís Henriques repetiu o gesto. Em consequência, ao juiz competia, não apenas permitir a prisão, mas ainda coadjuvar Luís Henriques na execução da mesma. Assim, foi sob a responsabilidade do juiz de Vila Flor, que Lopo Machado foi metido na cadeia da localidade durante aquela noite, de tudo mandando o mesmo juiz ao tabelião António Borges de Castro lavrar o competente auto de prisão. Tal como a responsabilidade pela segurança do prisioneiro foi, pelo juiz, entregue a outro homem da nobreza da terra, o alcaide António do Sil.

Bem guardada ficou a cadeia em toda a noite pelo alcaide, pelos dois filhos de Julião Henriques e por dezenas de cristãos-novos que festejavam a prisão do homem mais odiado pela gente da nação, pois era ele que costumava executar as prisões em nome do santo ofício, fazer o sequestro dos bens e conduzir os presos para Coimbra.

Bem cedo, na manhã seguinte, chegou o meirinho da correição de Moncorvo e Luís Henriques entregou-lhe a vara e o prisioneiro, já colocado em cima de “uma besta de albarda, com grilhões nos pés” e, se não fosse a pressão exercida por várias pessoas da nobreza de Vila Flor, ter-lhe-iam atado uma corda ao pescoço, para o espetáculo ganhar imponência. Imaginamos a cena: o poderoso Lopo Machado que, sem “dó nem piedade” prendia e acorrentava os “judeus”, via-se agora preso e acorrentado por eles, posto a ridículo em cima de uma besta, engolindo um mar de insultos. Veja-se o testemunho de Luís Borges de Macedo, tabelião de Vilas Boas, que também assistiu ao espetáculo:

— E logo as pessoas acima nomeadas e as que traziam em companhia levaram preso o dito Lopo Machado Pereira a Torre de Moncorvo, com muitas palavras afrontosas, querendo-lhe atar as mãos atrás e lançando-lhe uma corda ao pescoço, se umas pessoas nobres que ali estavam o não impedissem.(3)

Para além do meirinho da correição, o prisioneiro foi acompanhado a Moncorvo pelo juiz de Vila Flor e por Luís Henriques, naturalmente. Foi metido na cadeia da comarca mas… “logo na noite seguinte, fugiu da dita cadeia”.

Não sabemos como nem para onde fugiu Lopo Machado. Sabemos é que a sua prisão foi considerada uma ofensa ao santo ofício, que logo mandou ao comissário Domingos Carneiro, de Vila Real, averiguar e, em 11.2.1645, na sequência do seu relatório, o tribunal de Coimbra ordenou a prisão da mulher e dos filhos de Julião Henriques e 5 outros homens “visto serem todos cristãos-novos e acharem-se presentes à prisão de Lopo Machado, que se fez em ódio ao santo ofício”.

Voltemos atrás, a 1642, às investigações do comissário Castelino de Freitas. Por recear interferências da gente ligada “aos Juliões, que eram rendeiros e costumavam dar agasalho ao visitador”, foi alojar-se na casa do Abade e ali ouviu as testemunhas. Antes, porém, certificou-se que no piso debaixo, utilizado pelo abade para arrumos, não estava ninguém. A primeira pessoa que apareceu a denunciar foi Lopo Machado, como já se disse, o qual começou falando muito alto. Depois, o comissário recomendou-lhe que “falasse manso”.

Dias depois, soube-se que, efetivamente, Diogo Henriques Julião estava ouvindo a conversa, escondido na adega da casa, com um criado, munido de uma espingarda, a uma porta.(4) E ele próprio contou que, a partir de certa altura, deixou de ouvir a conversa, porque Lopo Machado passou a falar mais baixo.

Claro que isto era muito ofensivo para o santo ofício e o comissário escreveu para Coimbra lançando as culpas sobre o cura, padre António Gil ou “um criado do abade, que se chama Leite”, concluindo do seguinte modo:

— Daqui se pode inferir quão atrevidos são os homens da nação de Vila Flor e como acham cristãos-velhos que lhes dão a mão contra as coisas da nossa santa fé.(5)

Diogo Henriques Julião foi dos primeiros a ser levado nesta onda de prisões.(6) Foi Lopo Machado que o prendeu, e lhe sequestrou os bens. E enquanto estes eram arrolados e se juntava o dinheiro para despesas de viagem e alojamento na cadeia de Coimbra, o prisioneiro ficou guardado em casa de seu filho Jacinto Machado. A ele foram também entregues os bens do prisioneiro. Imagina-se como os mesmos bens seriam posteriormente vendidos ao desbarato e como estas coisas faziam crescer ódios e projetos de vingança entre os cristãos-novos.

Para nos dar conta desses ódios e desses projetos, nada melhor do que as cartas que o mesmo Lopo Machado escreveu para Coimbra e andam transcritas no processo de Julião Henriques.(7) Começou por falar na prisão de Isabel Pereira, que ele encarregou ao corregedor António Cardoso de Sousa, que morreu em casa do padre de Samões, depois de beber um copo de vinho, acrescentando que “Julião Henriques, corre com o dito clérigo e seus familiares com muita amizade, o que deu muita suspeita da sua morte”.

Falou depois da prisão de Diogo Henriques e da finta que o pai lançou, criticando também o “corregedor André Barreto Ferraz, natural de Aveiro, que por respeito os favorecia demasiadamente (…) E se gabam poucamente que me hão-de destruir e que não hei-de prender outros”.

Bartolomeu Rodrigues Pimentel foi seu ajudante na prisão de Diogo Henriques e preparava-se para ficar depositário dos seus bens. Porém, como era pobre e não podia dar garantias sobre os mesmos, foi obrigado a recusar o encargo (benesse!). Sobre o assunto, L. Machado concluía:

— Tem dado nesta vila e comarca notável escândalo ver que as pessoas que fazem diligências do santo ofício e os que ajudam são desta sorte perseguidos pela gente da nação e por estas razões lhe hão medo que não se atrevem a dizer as verdades. E por dizerem poucamente que pois os prenderam, hão-de fazer ir à santa inquisição todos quantos há nesta vila cristãos-velhos e cristãos-novos, gabando-se de serem poderosos e terem dinheiro, acabam por difamar a santa inquisição; dizem que este novembro próximo passado, Julião Henriques mandara um macho com uma carga de presuntos de peita a um ministro da santa inquisição, da mesa grande, só a fim de que a gente de pouco entendimento lhe haja medo e não se atreva a dizer o que souberem. Porque este povo está tão intimidado e esta comarca tão escandalizada que os homens de mais conta afirmam que na Cristandade não aconteceu outro caso como este, pois estando em Portugal, haviam os homens de ser perseguidos por defender a lei de Cristo.(8)

Lopo Machado tinha uma certa razão. Ele próprio iria sofrer a vingança dos cristãos-novos, que o fizeram prender. Mas antes, teve o prazer de participar na prisão do rival Julião Henriques. E porque este é “rico e poderoso”, receava que os seus familiares e amigos “possam com dinheiro corromper o carcereiro (…) e a peso de ouro o poderão tirar da cadeia”. Por isso, pedia aos inquisidores que mandassem levá-lo depressa para Coimbra.

 

Notas:

1 - No processo, a Rua da Fonte é também chamada de Rua Direita e Rua Nova.

2 - Inq. Coimbra, pº 6891, de Rodrigo Fernandes Portello.

3 - Idem.

4 - Idem, pº 2903, de Leonor Henriques.

5 - Idem.

6 - Não encontramos o seu processo nos índices disponibilizados pela Torre do Tombo.

7 - Idem, pº 3869.

8 - Idem.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães