FUMEIRO - Para Carla Alves e Alexandrina Fernandes

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O Homem via-o crescer espontaneamente, inflamado, das folhas secas, dos boqueirões vulcânicos, dos incêndios repentinos das florestas. Temiam-no, tremiam ao contemplarem os seus efeitos. Por tão ingente impressão os homens primitivos lhe prestavam culto, alargando-se tal culto pelos séculos fora a vários povos de díspares latitudes.
Na sequência dos intempestivos incêndios, às vezes, os nossos ancestrais dos primórdios apreciavam despojos de carne de animais apanhados pelas chamas, o sápido sabor, fugaz, a desaparecer no gorgolejar seguinte. Eles não sabiam produzir o fogo.
Os investigadores acreditam terem os homens aprendido a «fazer» fogo sem saberem uns dos outros, também não é fácil estabelecer prioridades no tocante à fricção de seixos ou de dois paus, sabemos sim, ser essa descoberta a mais importante da história da humanidade.
Os anexins dizem: não há fogo sem fumo, nem há fumo sem fogo. Ora, se o fogo revolucionou a vida dos nossos longínquos antepassados, se possibilitou e possibilita os alimentos serem cozinhados, o fumo defuma as carnes conservando-as mais tempo descobriram os nossos parentes de antanho.
De experimentação em experimentação consideraram as tripas dos animais abatidos como precioso auxiliar no derribar de dificuldades de um quotidiano sulcado delas, impermeáveis e elásticas serviam na perfeição no transporte da imprescindível água, para a confecção de utensílios, vestuário e calçado. E…para receberem produtos a defumar porque de outra forma deterioravam-se num ápice.
Sim, dos experimentos saiu a prova provada de suportarem o fumo sem risco de os conteúdos se estragarem. E, assim foi a parição do fumeiro fruto da fumagem de lenha.
Sobre as características da fumagem dispenso-me de escrever, do mesmo modo relativamente aos modos e segredos na escolha das lenhas, horas e constância do fogo, não obstante, atrevo-me a dizer que existe arte na arte da fumagem levando a que a mesma ascenda a um plano de conceder peculiar sabor aos enchidos, e não apenas prosaico método de conservação.
Nesta crónica parece-me despiciendo aludir a outros produtos passíveis de fumagem que não tenham matricialidade no porco, do estimado animal tão nosso amigo após a sua morte intencional – a matança –, embora judeus e muçulmanos o considerem indigno de ser comido, apreciado, saboreado dentro das sete cozeduras.
No Nordeste o fumeiro durante séculos só ascendia à condição de luxúria gastronómica nas casas dos ricos (ricos a sério eram muito poucos), nos restantes lares de gente abonada, remediada e pobres os salpicões e as chouriças de carne detinham o estatuto de moeda sonante, pagavam favores de toda a ordem, se sobravam vendiam-se alguns e algumas a fim de a Grande administradora – a Mãe – adquirir o indispensável na mercearia, na botica e alguma roupa e calçado. Salpicões e chouriças de carne apenas no folar, parcimoniosamente na altura das segadas, malhas e nos dias nomeados, festas e romarias.
Mais democráticas as alheiras. Mesmo assim imperava a conta, peso e medida, verdade, verdadinha, na generalidade dos lares nem as bocheiras, de verde e restantes estavam à mercê da ânsia de toda a família. Os azedos (de pão), o palaio, a bexiga alegravam o estômago dentro do preceituado pelo calendário.
Como expoente visível, a faculdade de o fumeiro amenizar a monotonia dos jantares (almoços) e ceias, de alegrar as merendas, de proporcionar duplo e deleitoso prazer quando se retiravam do folar rodelas de salpicão e de chouriça, comidas aos solavancos, vagarosamente levava-se ao «céu-da-boca» massa que as envolvia. Delícia das delícias.
As condições de vida mudaram, para melhor, felizmente, desde há anos as transformações sociais e económicas potenciaram a recuperação das Feiras de produtos específicos, sendo a do Fumeiro de Vinhais pioneira no que tange ao mealheiro alimentar de outras épocas.
Fala-se muito do arrebatamento quase totalmente triunfante do sector das Feiras de matérias-primas alimentares. Discute-se animadamente isto e aquilo, salvo melhor opinião valia a pena analisar-se o essencial, deixando de lado o acessório. E, o que é o essencial? Inúmeros vectores, desde os referentes à concorrência até aos da genuinidade, passando pelos da inovação, criatividade, multiplicidade turística e representações gastronómicas. Ainda, acerca das incertezas críticas.

Armando Fernandes