Falando de … Cartas reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro, de Pedro Eiras

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Se é verdade que são muitos o estudioso de Pessoa que, desde há vários anos, produzem obra e a publicam, dando a conhecer a maior figura da poesia portuguesa contemporânea, não é difícil imaginar que tudo está dito e escrito.
É sempre com redobrado interesse que um texto versando Fernando Pessoa alimenta a nossa curiosidade
Para além da obra produzida por Teresa Rita Lopes, investigadora de referência e a de Cleonice Berardinelli, alma-mater de Pessoa em terras brasileiras, vão aparecendo a cada momento nas livrarias, trabalhos que não sendo de estudiosos considerados consagrados, acrescem sempre algo ao que já foi divulgado.
Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho, obra que suscitou críticas severas dos chamados especialistas, chegou ao grande público, e foi ofertada às Escolas Secundárias de todo o país. Lá, a vida de Pessoa, nas suas mais variadas facetas, não esquecendo a relação pormenorizada com Ofélia Queirós, que o queria burguês, tributável, de companhia, e a quem ofereceu a sua fotografia em “flagrante delitro”, depois de um namoro interrompido. Coube a Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia, a entrega de tão famoso retrato.
Recentemente, Sónia Louro, romanceou um Fernando Pessoa, onde a ficção se contamina com a realidade. Um prazer de texto a não perder.
Vivendo no recato da sua existência, dominado, quantas vezes, pela solidão e pelo álcool, sem que alguém o tenha visto bêbado, pouco se deu a conhecer.
       Refugiado na sua obra imensa, é Fernando Pessoa, conhecido por aquilo que se publicou e pelo que ficou por publicar numa arca que faz as delícias dos pessoanos.
Mas como conhecer e entrar nos bastidores da existência deste homem que é uma atracção para filólogos, poetas e amantes da língua portuguesa? A epistolografia que tem sido objecto de estudo em Portugal e que serviu a confidencialidade dos intervenientes, é um instrumento importante e essencial no estudo de Fernando Pessoa. Sabemo-lo interlocutor de escritores da época. Conhecemos os seus comentários acerca das cartas de amor, consideradas ridículas, é oportuno regressar às que não eram conhecidas e não foram publicadas aquando da edição das cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa.
Sabemos que Mário de Sá-Carneiro, amigo íntimo de Fernando Pessoa, viveu em Paris, em vários momentos da sua vida. De 1912 a 1913 cursou Direito na Sorbonne. De Junho a Setembro de 1914, viveu em Paris, voltando em 1915, aí permanecendo até 26 de Abril de 1916, dia em que se suicidou.
Aquando da sua permanência em Paris, Mário de Sá-Carneiro carteou-se com Fernando Pessoa. Muita da correspondência foi publicada, escasseando, contudo, as cartas de Fernando Pessoa.
Pedro Eiras, professor da Universidade do Porto, aproveitando a ida a Paris em Outubro de 2015, a fim de participar num Colóquio, deslocou-se ao Hôtel de Nice, hoje Hôtel des Artistes, onde Mário de Sá-Carneiro viveu os últimos meses e se suicidou, na zona do Pigalle.
Durante as últimas obras do hotel, encontraram nas águas furtadas, uns papéis, depois amarrados, por um cordel, que constituíam a correspondência que Fernando Pessoa dirigiu a Mário de Sá-Carneiro, entre Julho de 1915 e Abril de 1916. Eram 40 cartas, 30 postais e 1 telegrama.
Pedro Eiras perguntou se podia levar as cartas. Na ausência do gerente, que se encontrava de viagem, a autorização não lhe foi concedida, limitando-se a lê-las durante vários dias, além de as ter copiado, para o computador. Dada a impossibilidade de trazer as cartas, por empréstimo, fotografou uma, com o telemóvel, quando o empregado, Monsieur Lange, se ausentou. Talvez correspondendo ao seu estado de espírito, a fotografia ficou tremida e desfocada, o que só verificou mais tarde; não obstante este facto, é-nos apresentada de forma bastante imperceptível. Quanto ao conjunto, informa-nos Pedro Eiras, que algumas cartas se encontram bastante danificadas, apresentando rasgões ou manchas de humidade e bolor.
Escritas num período em que a 1ª Guerra Mundial é preocupação quotidiana de toda a população, as cartas passam ao lado dos acontecimentos, aludindo à guerra, unicamente, como justificação para o atraso na correspondência.
Terminando invariavelmente com um abraço, é uma constante na escrita de Fernando Pessoa o recurso a temas em torno da literatura e da produção literária. Para além do lançamento do Orpheu na Europa, para cuja tradução Fernando Pessoa se encontra disponível, é seu desejo a publicação urgente do Orpheu 3.
Mário de Sá-Carneiro, consagrado ao seu isolamento, não divulgando o seu endereço aos amigos, queixa-se, por vezes, de não receber mais correspondência de Lisboa. Fernando Pessoa tentando desanuviar alguma melancolia dominante no seu interlocutor, não deixa de acrescentar que “cartas são papéis escritos com tinta a não valem a sua presença nem a minha”.
Da leitura das cartas de Fernando Pessoa, verificamos que Mário de Sá-Carneiro é o receptor privilegiado da produção pessoana. É a ele que Pessoa dá conta que tem escrito muitos poemas em português e inglês, muitos em seu nome, e outros sob assinatura que Sá-Carneiro conhece bem: Campos, Caeiro e Reis, “figuras reais que o habitam para existir”. Com o Futurismo de Marinetti a inundar o Modernismo português, sabemos que Álvaro de Campos, sozinho, tem trabalhado um livro inteiro de Odes que envergonha toda a escola de Marinetti.
Em tom confessional, afirma que sente uma constelação de vozes que não convocou, que surgiram, não sentindo qualquer merecimento por isso.
A descrença de Mário de Sá-Carneiro na sua valia é do conhecimento geral. José Régio, que ao teatro dedicou muito do seu talento, escreveu a propósito, “Mário ou eu próprio”, Fernando Pessoa, utilizando o “você”, como forma de tratamento, incita o amigo a ser optimista, convidando-o a não se preocupar com comentários gerados à volta do entendimento da sua obra. Fernando Pessoa, por seu turno, receia que nem dez leitores percebam o que eles escrevem.
Problemas de dinheiro, gerados pela prodigalidade de Sá-Carneiro, buscam em Pessoa uma solução que pode passar pela penhora de objectos estimados. A falta de dinheiro, também, toma conta de Pessoa. A aquisição de um livro mau subtraiu-lhe o que tinha, ficando privado do jantar.
A aversão a Júlio Dantas não escapa aos interlocutores, que culminará com a publicação do Manifesto Anti-Dantas por Almada Negreiros, alvo dos elogios de Fernando Pessoa.
A vida de Lisboa e a sua intelectualidade espelham-se nestas cartas que dão a conhecer e a confirmar algo que era do conhecimento dos estudiosos. As traduções fazem parte da sua existência e subsistência, que vive apavorada com as trovoadas. A teosofia entusiasma-o e o Fausto começa a aparecer, dedicando-lhe muito do seu tempo.
Ponderando estabelecer-se em Lisboa como astrólogo, escrever é corrigir e esquecer. A poesia é o único farol em que ainda acredita por entre todas as coisas imaginárias, numa angústia intelectual que Sá-Carneiro não imagina.
A crise de Sá-Carneiro, que não compreende inteiramente, perturba-o. Lamentando-se da sua orfandade por não ter casa nem família, refugia-se no trabalho que exige quase todo o seu tempo.
A última correspondência, datada de 25, 26 e 27 de Abril de 1916, já não será lida por Mário de Sá-Carneiro. Como se fosse o último dia da sua existência escreve no postal de 27 de Abril de 1916 “E nem sei o que o amanhã me trará”, antecipando a frase escrita no Hospital de São Luís dos Franceses, em 30 de Novembro de 1935
“I know not what tomorrow will bring”.
Um livro a ler. Uma realidade descoberta por alguém que imaginou que ainda havia Pessoa para além dos circuitos tradicionais dos estudiosos pessoanos, a acrescentar saber aos que o procuram.
Pessoa, em pessoa, longe do fingimento, na confidencialidade do texto, em conversa com o amigo que os deuses levaram ainda tão jovem, num livro de 159 páginas editado pela Assírio & Alvim.

Por João Cabrita

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico