E agora, António?

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“ O povo português é absolutamente extraordinário nas crises e medíocre no regresso à normalidade.” – A frase não é minha mas sim de Costa Silva, o homem forte do momento, escolhido pelo primeiro-ministro para preparar o plano de recuperação pós-covid, Só a controvérsia gerada pela sua designação dava para escrever várias páginas, não por causa do perfil ou da competência, mas pelo que significa num país habituado a criticar por tudo e por nada. Interessa a frase, que subscrevo, e que se situa na linha de uma outra expressão, essa com mais anos, e da autoria de Jorge Dias: “O povo português passa facilmente da exaltação épica à lamentação ética”, ancorada, por sua vez, nas lamentações do grande poeta, Luís de Camões, que se queixa do desprezo a que foi votado e do estado da nação. No reinício da vida social, para além do que era previsível em termos pandémicos, somos confrontados com um mal maior que tem a ver com a ambiguidade do discurso das autoridades, associado a uma regulamentação que de tão contraditória que é, dá a impressão de se ter perdido por completo a noção da razoabilidade e da coerência na tomada de decisões. Pense-se, por exemplo, na reabertura dos jardins-de-infância e na ausência de regras para o funcionamento dos ATL’s que, por falta de legislação, continuam, até ao momento, encerrados. Mais grave ainda será a situação dos lares e das estruturas residenciais para idosos, com visitas proibidas desde o dia treze de março. Reiniciadas agora sob a batuta de um discurso sanitário preventivo, impõe restrições de tal ordem que se revelam contraproducentes, multiplicando relatos da recusa, por parte dos séniores, de aceitar visitas porque proíbe a socialização, os afetos e a proximidade. Ao esquecer outras dimensões da vida, tão ou mais importantes do que a saúde física, esquecem as autoridades que estão a segregar e a privar de um direito, aqueles que pelo simples facto de estar num espaço comunitário não lhes é permitido o regresso à nova normalidade e às rotinas que ainda lhe conferiam a singularidade de ser pessoa. Há nos lares, quem faça da ida ao café, ao cabeleireiro ou do simples passeio a âncora dos seus dias; no entanto, o estereótipo de que só vai para o lar quem já nada pode toldou a capacidade e o entendimento das autoridades obrigando esta população à continuação de um incompreensível confinamento que põe em causa liberdades e garantias. Sendo as falhas da supervisão sobejamente conhecidas, é legítimo questionar até que ponto pode o estado português garantir aos cidadãos, nomeadamente aos familiares dos utentes, que durante este período continuaram a receber o tratamento adequado, a atenção dos colaboradores e a assistência religiosa, caso a desejem. Há um longo caminho a percorrer na forma como se continua a olhar a geração dos maiores e, sobretudo, quando se conota o “idoso” com a pessoa vulnerável tão próximo do discurso idiota que os rotula de “meus bebés” ou “meus meninos” e no qual se tropeça a cada passo pelos corredores de tantas dessas estruturas. Em vez de achatar a curva da solidão, a pandemia serviu para a reforçar, em vez de se criarem programas de promoção de qualidade de vida, descurou-se o essencial. Algumas das figuras de proa e de decisores que diariamente têm aparecido nos ecrãs, estão a meia dúzia de anos, alguns menos, de entrar no grupo que agora mantêm entre quatro paredes. Passados noventa dias da declaração do estado de emergência e quando os apelos para o regresso à normalidade social se ouvem a cada instante, é lícito perguntar se, quando as autoridades de hoje, cidadãos comuns de amanhã, derem entrada num lar, também quererão estar confinadas? Hoje, tal como ontem, há apenas uma certeza: perante as leis da vida, somos todos iguais. Já não bastam os ensaios académicos, profundamente teóricos, que apontam para a necessidade de mudança no modo como se encara a velhice no século XXI. É que se aos jovens oferecemos uma escola do século dezanove, com professores do século vinte, para uma realidade do século vinte e um, aos maiores faz-se ainda pior, porque se antes eram encarados como fonte de sabedoria, hoje foram reduzidos a nada.

Raúl Gomes