Calcanhar de Aquiles

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Fevereiro quente… – em tempos não muito longínquos bastava que alguém pronunciasse estas duas palavras para, de entre o meu povo, alguém responder: — Traz o diabo no ventre! – Era o tempo em que não se estudavam os provérbios na escola e a sabedoria popular condensava em frases curtas um saber de gerações, em que não se estudavam grafos nem inequações mas se sabia como calcular a área de um terreno ou quanto era um quinto de qualquer coisa. Tudo passa, mas este fevereiro é quente e, como se não bastasse, bissexto.

Como tudo muda, o mês continua a trazer boas notícias para o governo: a estimativa do INE aponta para um crescimento de dois por cento da economia portuguesa no ano de 2019, terminando o quarto trimestre com o produto interno bruto a crescer mais três décimas que o período anterior. Como se tal não fosse suficiente, estes resultados devem-se à recuperação das exportações, havendo, por outro lado, a diminuição das importações, o que equilibra a balança comercial e é um excelente sinal para o mundo. Se quisermos continuar a ver o copo meio vazio, basta estar atentos às recomendações das agências de notação e às advertências sobre a dívida pública; já o copo meio cheio diz-nos que, embora a conjuntura e o novo figurino parlamentar sejam diferentes, existe um primeiro-ministro com capacidade de negociação capaz de manter o executivo em funções até ao fim. A aprovação deste orçamento evidenciou as capacidades demonstradas na primeira legislatura, sendo que a percepção foi mais a de que nenhum partido deseja uma crise política nesta altura.

Tudo isto é compreendido pela opinião pública que, habituada a coexistir com estereótipos e paradigmas, se surpreende quando o líder da UGT veio a público desafiar António Costa para lhe dizer “olhos nos olhos” – expressão do próprio – se tem algum problema pessoal com ele. Na cultura ocidental, olhar nos olhos tanto pode ser um ato de amor como de desafio, e nós, povo, alheados dos meandros da política podemos interpretar a bel-prazer as intenções de Carlos Silva que ficam mais evidentes ao sabermos que o chefe de governo nunca recebeu o líder da central sindical afecta ao Partido Socialista, e que este apoiou António José Seguro na liderança partidária contra Costa.

Tendo a obrigação de saber traçar perfis e analisar organizações, mais do que política e economia, tenho a dizer que se está perante um clássico nas relações de poder, nas quais o indivíduo após algum tempo de permanência no cargo se vai esquecendo do seu papel de líder e deixa emergir as caraterísticas pessoais que, a pouco e pouco, o vão transformando em anti-herói; em política é extremamente fácil acontecer. Embora compreensível, o mesmo princípio pode aplicar-se à outra parte. Com efeito, quando uma central sindical tem um líder que durante quatro anos não estabelece contacto direto com outro líder, não só vê a sua posição fragilizada em termos negociais com o patronato e outras organizações, como é questionável a sua capacidade em criar cenários de afirmação da autoridade que necessita de ter. O caso adquire ainda maior relevância quando, na referida, Carlos Silva faz questão de frisar que até Passos Coelho o recebeu várias vezes “demonstrando o respeito institucional e a dignidade da UGT na sociedade.” Conhecendo-se o que o fantasma passista significa para as esquerdas, considero que tal argumento deita por terra qualquer expectativa que houvesse na reversão do quadro, sobretudo, porque o tempo não joga a favor da central sindical e, especialmente do líder, que estará de saída.

Acima de tudo, lamenta-se que, nesta como em outras situações, os líderes coloquem as suas vaidades pessoais acima do bem-comum e de provocação em provocação se vá minando um clima de paz tão necessário à concertação social e imprescindível à mesa das negociações. Pode a central falar com secretários de estado e outros ministros, mas é por demais evidente a deterioração das relações institucionais. Como cidadão lamento, sobretudo, que quando, pela primeira vez há um PS que se afasta do lastro do despesismo que se associava ao seu ADN, apareça agora como uma estrutura a desintegrar-se e em risco de implosão, é que “Todo o reino que luta contra si mesmo, será arruinado.” (Mateus, 12:25).

Raúl Gomes