Autognose existencial em Reflexos de Mim, de António Sá Gué

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«A mente é um fogo a ser aceso, não um vaso a preencher»

Plutarco

 

«Para compreender os outros, precisamos mais de aprender os seus silêncios do que as suas palavras»

Ivan Illich

 

«O silêncio é apenas um horizonte no futuro, uma linha difusa que nos conduz a uma longa viagem interior»

Sá Gué

 

Neste pequeno livro, em tamanho, mas denso em reflexões e pensamentos, o autor apresenta-nos um espelho, onde se reflete sem rede e outras proteções. Aqui o ‘poeta’ desnuda-se e abre-nos o seu pensamento, escancara-nos a alma para deixar ver claro, através da pureza imaculada das palavras, a matéria de que é/somos feitos e que, nem sempre, temos a coragem e a ousadia de assumir e, utopia desejável, melhorar, como sugere. Com esta postura, o escritor cumpre a máxima de Gonçalo M. Tavares: «A alma deve encher todos os cantos da casa-corpo» (Tavares, 2018: 112).

O escopo principal do autor não é o pendor biográfico, nem confessional, mas sobretudo, reflexivo e intimista. Assim, as meditações que enformam o livro, sendo do autor, podem ser extensíveis ao leitor que se reverá no espelho, mais ou menos baço, que o escritor lhe apresenta na viagem que faz ao centro de si, como lembram estes versos de Emily Dickinson: «Debaixo! Explora-te a ti mesmo! / Pois dentro de ti encontrarás / o continente desconhecido». 

A obra, estruturada em quatro partes, apresenta-se irregular, uma vez que vale, em especial, pelas duas primeiras. A terceira era desnecessária e, quanto à quarta, é, puramente, um equívoco, como se verá a seguir.

Este último livro de António Sá Gué, abrigado à sombra da epígrafe de Rabi Nahman de Bratslav: «Não perguntes o caminho a quem o conhece pois assim não te poderás perder», pode ler-se como uma peregrinação interior sem qualquer tecnologia de orientação. Nesta viagem nunca a pergunta se resolve, antes se amplia, pois só a questionação pode mitigar as pequenas coisas que tecem a existência humana, aprisionada numa enorme teia. Assim, o escritor valoriza mais o processo, na senda da maiêutica socrática, do que o produto. A leitura destes textos lembra-me as palavras do poeta José Tolentino de Mendonça: «A pergunta “qual é o meu desejo?”, não a encontramos sem consentir primeiro na viagem que só começa quando ousamos entrar dentro de nós próprios» (Mendonça, 2018: 40).

Eis o método do escritor: «Não encontro outro método que não seja arrastar o meu centro de gravidade para o pensamento: deduzo, racionalizo, penso» (55). Confiado nesta metodologia, o escritor esboça o projeto para realizar a caminhada terrena: «Voo para lá dos pensamentos e, mesmo assim, não lhe perceciono o sentido. Procuro personagens, mas não as encontro. Clamo por ajuda ao futuro e não recebo respostas. Olho lá para fora e não há nada para ver. Liberto o vazio e as bombas da vida rebentam mesmo a meus pés: as sombras da escuridão erguem-se nas paredes do desfiladeiro onde caminho, os espíritos do gelo arrepiam-me a pele, mas, mesmo assim, continuo» (Sá Gué, 2018: 11, sublinhado meu). E, num eco do «Corvo» de Edgar Allan Poe, confirma o seu caminho: «lanço-me nesta tarefa de entrar na minha sombra, que não é inédita, mas onde o silêncio me impele a que o faça. Eu sei que há nesta imagem algo de corvo solitário a pousar na árvore fronteira da minha própria janela, eu sei, há o perigo de amanhã lamentar a liberdade pela ousadia de desafiar os deuses do vazio, eu sei, mas a beleza está nestes universos interiores, creio, e não na tenebrosa realidade quotidiana» (12, sublinhado meu). Enunciado o propósito, atente-se, ato contínuo, nas dificuldades dessa romagem interior, escalpelizando a estutura e os conteúdos.

A obra é constituída por quatro partes. A primeira, subordinada ao sugestivo título «Ouroboros», é composta por cinquenta e dois poemas em prosa. O título, nomeando a serpente que devora a própria cauda, remete, em termos metafóricos, para a deglutição interior propiciadora do autoconhecimento do ser humano. A inquietação/caminho interior faz-se, segundo o autor, lançando mão do pensamento «esse inimigo mortal» (16), que aumenta o sofrimento. Esta conceção pessoana do conhecimento e do sonho vem das «catacumbas do ser, da rotunda que sou e nas voltas em torno das ideias» (16). É, de certo, pelas ideias e pelo pensamento que o homem pode atingir a elevação desejada, como recorda Alberto Caeiro/ F. Pessoa: «Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não, do tamanho da minha altura...». Perante tais descobertas, o escritor afirma que conhece «a condenada condição humana» (19).

O itinerário interior faz-se, também, de palavras que não conseguem transmitir, de forma límpida e impoluta, o pensamento, como é desiderato do autor: «O ideal seria abrir brechas nas palavras que se alinham em torno do pensamento» (21). No entanto, a palavra/escrita é o único bálsamo ao alcance do escritor que se considera um «caótico pedinte de palavras» (27), com as quais tanto cria «universos informes e incompreensíveis» como «seara de palavras nuas, silenciosas e de olhares ocultos» (52).

Nesta hercúlea caminhada, também, há desânimo: «Sou uma coisa sem futuro» (28); «És árido e a tua aridez seca tudo o que toca» (31); «Os sonhos vão-se desfazendo» (32). A este desencanto associa-se o rancor escondido nos olhares de ódio que «quebram os pensamentos» (43). Mas, de novo, sobrevem a coragem: «Ergo-me. Subo a montanha num movimento sisífico» (48). É este esforço, por vezes improdutivo, que deve animar o Homem para que, aos poucos, encontre o objeto da sua procura, ou, nas palavras de Sócrates, se conheça a si mesmo.

A importância da palavra, tradução imperfeita do pensamento, é realçada no final desta parte, sendo autossuficientes para o escritor: «Bastam-me as palavras. Não necessito de mais nada, apenas palavras para mastigar e me alcançar. Apenas palavras para olhar de fora para dentro e vice-versa» (64, sublinhado meu). É, pois, pelas palavras que se faz a introspeção do Ser nesse trânsito recíproco de fora para dentro e de dentro para fora, remetendo, uma vez mais, para o sentido metafórico da víbora Ouroboros, fantasma que assombra este primeiro andamento.

À segunda parte, apresentando o denotativo rótulo «Pedra filosofal», pertencem trinta e seis composições em prosa poética. O poeta, qual alquimista, utiliza a Lapis Philosophorum para transmutar os metais em ouro. Contudo o metal do poeta, o pensamento, continua, como já acontecia na primeira parte, a ser trasladado no único ouro ao alcance do escritor/alquimista, ou seja, as palavras. Nesse sentido, deseja aprisionar o pensamento, estabelecendo uma comunicação cristalina, sem a impureza das palavras, como se infere desta afirmação: «Fotografar um sonho é a minha utopia» (72). Pois caso conseguisse captar a essência dos pensamentos: «Vã seria a exuberância das palavras e a poesia. Vã seria a necessidade de compreensão…» (72).

Se na primeira parte a busca era pessoal e o Ser respondia à sua interpelação, agora a busca é extensível à sociedade, como comprova a frase de Pessoa, retirada da obra O Banqueiro Anarquista: «Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais» (107). A vida consome-se entre forças antagónicas: montar, desmontar; reconstruir, desconstruir, e nessa roda: «Desmontarmo-nos a nós próprios, com ou sem ajuda de palavras, interpretar de forma diferente esta realidade que damos por adquirida e que diz tudo fazer por nós, leva-nos para outros caminhos» (77). O desejo, associado à ousadia, mantém-se, e o homem empenha-se em superar os seus limites «Ninguém nos obriga a subir a montanha e, no entanto, trepamo-la» (75).  Esta vontade é afetada pela ignorância que tudo explica: «Explica o Homem e a virtualidade do seu imaginário» (78).

A apatia e a disforia apoderam-se do poeta ao qual nada mais resta a não ser esperar, mas mesmo nesse momento abúlico ainda clama: «espero até que o silêncio se torne mais denso e me queime o pensamento» (89). O silêncio aparece com duas conotações: a negativa, «Talvez o segredo seja silenciar. Primeiro silenciar as armas, depois silenciar os pensamentos suspensos. Nesse silêncio darei a volta ao medo que me transforma» (84); a positiva, «mas, simultaneamente, beberei a coragem para continuar a caminhar. Nesse silêncio brindarei aos amores e desamores, à prisão e à liberdade de dizer. Nele encontrarei gotas vibrantes de ser» (84). É, pois, em silêncio, como já asseverei, que o escritor transforma as suas vivências, isto é, a vida em palavras.

Em resumo, o poeta, noite dentro, procura arduamente a sua «Pedra filosofal» que lhe permita transformar em ouro/palavras as suas reflexões, ou os seus Reflexos. Afinal a palavra é o ouro alquímico com o qual o escritor cristaliza o seu pensamento e nomeia o real que o cerca, levando o leitor à cogitação. Para a consecução desse desiderato, o poeta pretende: «Elevar o plasma literário à categoria universal e fixar a ausência das coisas na sinuosidade das palavras é o sonho de qualquer gota de tinta que vive esquecida no mundo absurdo das nuvens» (98, sublinhado meu).

A terceira, «Ad infinitum» título ambíguo, apresenta seis textos que, em meu juízo, encaixavam perfeitamente na segunda parte da obra, pelas temáticas e os motivos que desenvolvem e por amplificarem a pluralidade do eu. Estes seis poemas, segundo penso, seriam a conclusão perfeita da «Pedra filosofal», porque acentuam a vertente escura que vinha galgando terreno. A intrepidez da primeira parte é uma miragem, porque, no presente, se afirma: «Não compreendo esta apatia de ser que me invade» (115). O estado imóvel é acentuado pelo texto «o mito da Medusa» (116), cristalizando-se esta abulia plural em: «Vão cabisbaixos, pensativos, debruçados sobre as sombras que os perseguem. Alheios de si, seguem a escolha já feita e, na vastidão limitada das suas recordações, adivinham a felicidade na igualitária morte. Expulsos do Éden e do seu corpo, acham-se confinados a um vale de lágrimas, esquecem-se de si, delimitam o gesto e as palavras e, na mais profunda das comunhões, o fatalismo da servidão humana voluntária recupera subtis formas de compaixão» (117, sublinhado meu).

No fim, fica o silêncio que «é apenas um horizonte no futuro, uma linha difusa que nos conduz a uma viagem interior» (118). Conclui-se que o livro é circular pois abre e fecha com a ideia de viagem interior, elucidada atrás. O escritor, qual soldado do futuro, não desanima ao afirmar: «Analiso a liturgia das palavras e, de olhos eclipsados, remexo, em círculos, no inerte lodo dos dias que se magoam a enfrentar a realidade quotidiana» (119).

Por fim, na quarta parte «Os outros em mim» deparamo-nos com nove textos sobre obras publicadas pelo autor, enquanto editor. Entende-se, agora, o motivo pelo qual a excluí acima. Estes textos são, cada qual a seu modo, pequenas recensões sobre os livros publicados. Podem, ainda, funcionar como breves apresentações dos mesmos, uma vez que o desiderato do autor é patentear aos leitores possíveis linhas de leitura que as mesmas desenvolvem.

Termino recorrendo, uma vez mais às palavras do escritor, um peregrino da inquietação interior, que resumem o intuito que presidiu à elaboração desta reflexão: «A realidade humana acaba por se concretizar dentro da amálgama do carácter irreal de ser, e nesta fuga, constante e indefinida, tudo se constrói e desconstrói. Chegamos a descobrir a voz dos pássaros nas palavras e, no silêncio dessas vozes, surgem-nos outros sinais, outros pressentimentos e a casa assombrada, esta tragédia humana, vai-se construindo nas bases desse mundo, pessoal e intransmissível, onde tudo cabe» (80, sublinhado meu).

António Sá Gué, com esta obra, continua a admirar-se na aceção de Alberto Caeiro, pois sabe: «ter o pasmo essencial / Que tem uma criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras...»; ou, ainda, na senda de Theodor Adorno: «Espanto é um longo e inocente olhar sobre o objeto». Este estranhamento, permanente, sobre o Homem, enquanto ser em construção, obriga-o a uma constante reflexão sobre o conhecimento que tem dele e do mundo. Com estes silêncios, como lembra a epígrafe de Illich, o escritor facilita a nossa dupla compreensão, enquanto incendeia a nossa mente, na aceção plutarquiana. Nesta ação cogitativa, realiza uma viagem de depuração interior, continuando a colocar a eterna questão de Elsinore que torturou Hamlet e que prossegue no âmago da existência humana. A leitura de Reflexos de Mim é, sem dúvida, uma oportunidade de inteleção da mesma.

 

Bibliografia:

MENDONÇA, José Tolentino. O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas.

Lisboa: Quetzal, 2018.

SÁ GUÉ, António. Reflexos de Mim. Carviçais TMC: Lema d’Origem, 2018.

TAVARES, Gonçalo M. Livro da Dança. 2.ª ed. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.

Norberto Veiga