Água mole... Incomplacente carma

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A escusa do desconhecimento de nada adianta na medida em que, mesmo inconscientes, as nossas ações, quaisquer ações, visto surgirem num todo com o qual mantêm apertados laços, têm um impacto necessário sobre ele. Só isso já dá que pensar, mas mais perturbador é constatar que mesmo jazendo inativos sobre qualquer poltrona em estado de silêncio zen ou meditação budista, não apenas estamos a agir como a construir a própria realidade, que fatalmente dá forma ao mundo presente e se há de repercutir no futuro. Por conseguinte, por muito que dêmos por nós a desejar liberdade de ação, ou inação, como disse, sem ter que arrostar as consequências, não há saída, teremos sempre um papel no mundo, seja qual for.
Ora é sabido que há uma série de décadas, com total inconsciência das coações ambientais, se tem vindo a arborizar de forma extensiva parte importante do território com uma espécie exótica, o eucalipto, que, no ecossistema onde é endémica, não só tolera bem o fogo como evoluiu inclusivamente de modo a tirar benefícios dele. Não obstante, a decisão do seu cultivo entre nós não passou de mais um achado, entre muitos, da lógica exploradora das nossas sociedades industriais, lógica que exibe um desdém leviano pelo meio que nos sustém como se não houvesse efeitos, como se não fosse suicida maltratar a frágil bolha de vida de que somos parte e inteiramente dependemos.
É certo que, visto impelir o chamado desenvolvimento, tal ordem de desmandos tem vindo a acelerar e a multiplicar-se por milhões por todo o mundo, nos últimos séculos. Mas no que toca aqui a este peculiar retângulo, o que é mau parece sempre assumir proporções descomedidas, é tudo de caixão à cova, não se faz a coisa por menos. Se assim não fosse, como explicar a sanha predadora representada por essa bizarra e explosiva nódoa vegetal que, ao fazer de nós uma pequena Austrália no hemisfério norte, vai muito para lá do que é razoável e não pode deixar de ser vista como um atentado em grande escala, uma ousadia ignorante que lança na estupefação quem se dá ao trabalho de parar um pouco para pensar?
No meio natural que nos serve de matriz e nutriente, nenhum elemento está isolado e nada acontece sem ter ressonâncias. Ele é uma unidade solidária, onde tudo está ligado e cada parte produz a própria totalidade que a produz. Onde a borboleta que dá às frágeis asas em Saigão pode desencadear uma série de ocorrências que desembocam num mortífero ciclone no Noroeste Atlântico. Onde os blocos de gelo que derretem na Gronelândia vão submergir as terras férteis do delta do Ganges.
Afortunadamente, este nosso calmo recanto tem-se mantido, até ver, mais ou menos incólume à praga, mas a molesta conta do eucalipto (e também do pinheiro, já agora) mais tarde ou mais cedo haveria de chegar, como de facto tem estado a chegar. Ela traduz-se, no caso pendente, em desastres irrefreáveis e assoladores, com o seu desfile de perdas, morte e sofrimento que todos, de uma forma ou outra, suportamos. Contudo, a perturbação que com os abusos temos vindo a provocar nos climas do planeta (uma das consequências e causas dos incêndios), e que mais do que uma hipótese é já uma inquietante certeza, promete muitas mais desgraças, por certo bem mais severas.
No fervor da encenação alvoroçada que parasita a tragédia, debitada de maneira atenazante pelos meios informativos, e enquanto se discute a eficiência de bombeiros, proteções civis e siresps (coisas naturalmente pertinentes), o mais curioso é verificar que nunca se vai à raiz das coisas, pois o espalhafato existe mesmo se calhar para que, para lá do rosário de queixas e lamúrias, não se vá à raiz das coisas. Para montar cenários de faz de conta que desviem as atenções do essencial.
A verdade é que os principais suspeitos se barricam por detrás de um silêncio cautelar, fazendo figas para que se não dê por eles, com medo de que se mexa no ponto doloroso. E sem prejuízo do ónus que a todos cabe, eles são, obviamente, os interesses ligados às indústrias da madeira (com que os donos das terras também lucram, claro). O seu mutismo não acontece por acaso, sendo antes sintomático da tendência, que afinal nos é tão própria, de fugir à dureza incómoda da realidade.

Eduardo Pires