As Vozes e os Donos

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Ter, 19/09/2006 - 15:40


Quem observasse, pela televisão, a ocupação das instalações da encerrante maternidade de Mirandela, não poderia deixar de se concentrar num pormenor tão evidente quanto original.

Todas as mulheres que se manifestavam contra o fecho daquele serviço tinham já manifestamente passado da idade fértil. E essa estranha circunstância tornava as imagens mais do que esclarecedoras, porque o seu efeito ultrapassava as intenções de quem desencadeara aquela situação. Ali não havia, apenas, os sinais de um protesto; mas o simbolismo de uma presença que marcava, essencialmente, a ideia de fim. De uma morte anunciada.
Mas anime-se, leitor. Levante a cabeça, estique o pescoço, endireite os ombros. E tente sorrir. É que a vida é feita de equilíbrios e toda a gente sabe (até os transmontanos) que depois de uma forte contrariedade aparece sempre uma boa notícia. Por isso, já imaginamos que estará prestes a surgir – dentro do mega pacote do Simplex, do passaporte electrónico e do cartão 5 em 1 – o anúncio da conclusão da A4, de Vila Real a Quintanilha. Será certamente uma questão de dias, continuamos a imaginar. Porque a forma vertiginosa como uma das maternidades do nosso distrito acabou por encerrar só pode ser equivalente à velocidade de uma daquelas vias que os transmontanos vêem invariavelmente passar nos distritos adjacentes.
E se esta não é uma questão tipificadora da relação causa-efeito, como se poderia, então, alcançar o alcance das afirmações históricas que o inevitável deputado Mota Andrade fez sobre o binómio Maternidades/Acessibilidades?
“Todos sabemos que há muita gente que tem hoje o seu filho fora das maternidades existentes no distrito”, dizia ele à comunicação social regional, em Março passado. E acrescentava que “Chaves irá fechar tão rápido como uma das salas de parto de Bragança, basta que a auto-estrada esteja finalizada”.
Calculo que, neste momento, o leitor hesitará na atitude mental a tomar. Que fazer? Levar a sério as palavras do deputado e perceber que ele estava certamente a brincar; ou, pelo contrário, desvalorizar o sentido daquela afirmação (o que não será difícil se for uma pessoa atenta à realidade da região) e vê-las como uma fórmula estafada das medidas propagandeadas pela voz do dono de além?
É que nesta questão da suposta “escolha” que é feita pelas parturientes, há que distinguir entre aquelas que têm a possibilidade de optar por uma clínica no Porto (para onde se deslocam antecipadamente) e todas a outras que, por viverem longe da única maternidade do distrito, verão os filhos nascer nas ambulâncias ou surgir as eventuais complicações inerentes aos problemas logísticos, que agravarão as situações em causa, entre os solavancos das estradas nacionais e afins. Porque o governo, com o politicamente correcto lema de que “o encerramento de uma sala de partos é sinónimo de prestação de melhores cuidados de saúde”, parece ignorar que o velho problema da rede viária do distrito de Bragança é inseparável do novo encerramento da maternidade de Mirandela.
Mota Andrade poderá tratar o Primeiro-ministro por tu, mas essa familiaridade não esconde o facto de que os deputados por Bragança (sejam eles do PS ou do PSD) não têm qualquer peso ou influência política que justifique o cargo para que foram eleitos pela população do distrito. E quando Mota Andrade evoca a futura auto-estrada de Chaves para “explicar”que também, um dia, a maternidade dessa cidade fechará, está a mostrar que tem um estômago muito forte. Porque, com semelhante afirmação, o senhor deputado retira toda e qualquer legitimidade ao encerramento da maternidade de Mirandela. Já que parece suportar a decisão do governo numa rivalidade entre distritos, da qual, afinal (sossegai, bons brigantinos!), Vila Real não sairia vencedora. Porque, feitas as contas, os dois distritos acabariam com o mesmo número de maternidades, o que até sanaria as supostamente históricas hostilidades. Mas o deputado Mota Andrade parece querer fazer esquecer que o distrito de Bragança – que se vê agora com uma única maternidade – não só não tem qualquer auto-estrada, como se lhe arramam as estradas fora de validade. Enquanto que, a oeste, e mais perto do porto, o distrito de Vila Real, de menor dimensão física e com melhores vias de acesso, continuará a ter duas salas de parto. Mas até que Chaves tenha acesso directo à auto-estrada, porque depois disso uma delas encerrará.
É este o “raciocínio” com que o deputado Mota Andrade embrulhou a fórmula da voz do seu dono. E que deixa perceber que se, um dia, viermos a ter auto-estrada, acabar-se-á a sala de partos de Bragança. Porque, veja-se: as parturientes integradas nos concelhos que eram servidos pela maternidade de Mirandela optarão (se tal lhes for permitido, como o Ministério da Saúde tem propalado) pela centralidade do hospital de Vila Real e da sua proximidade dos grandes hospitais do Porto. Tendo em conta que a maternidade de Mirandela realizava uma média anual de 83 partos mais do que Bragança, a diminuição do número de nascimentos no distrito tornar-se-á cada vez mais evidente. Conjugados os factores que acentuam a desertificação galopante do distrito (população envelhecida, desincentivo à fixação de pessoas, perda de serviços), a auto-estrada que um dia por cá for construída servirá quase só para permitir o acesso mais rápido a Espanha. E, nessa altura, até a maternidade de Bragança fará pouco sentido.
Inesperadamente, mas muito a propósito, no recém-estreado semanário “Sol”, José António Saraiva faz referência ao encerramento de maternidades e de serviços públicos no interior, como um problema essencialmente político e não financeiro: “ (…) é preciso saber onde poupar e onde investir e, nesta altura, o combate à diminuição de nascimentos e a luta contra a desertificação do interior do pais são dois objectivos onde é preciso gastar”.
É certo que António José Saraiva não é político, mas nem só através dos partidos se faz política. E é uma boa surpresa verificar que um jornal nacional, que já era notícia antes de existir, se refira, em tom editorialista, a um problema que se repete na faixa leste de Portugal, mas assume contornos dramáticos no recanto mais a nordeste. Enquanto os deputados pelo distrito continuam a malabarizar as “suas” perspectivas para o “desenvolvimento da região” em função do jogo de corda que sustém a alternância do poder.
Mota Andrade ou Adão Silva, maternidade ou universidade: ou como a suposta “defesa das populações” é invariavelmente condicionada pelas estratégias das grossas agendas da política nacional.