Travessuras

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Ter, 28/11/2006 - 12:04


O rapaz parecia-se com um “bos mutus”, um “boi mudo”, cheio de habilidade, mas silente. Na frente dos pais baixava os olhos, tornando-se mais desapercebido, no entanto, na noite das travessuras todos o consideravam imprescindível para modelar e erguer – travessuras – de toda a espécie e tamanho, envolvendo materiais díspares e quantas vezes esquecidos nas palheiras, lojas e recantos da aldeia das maravilhas sem maravilha, a dita dos três deputados, quase sem lagares, apesar de o topónimo Lagarelhos os indiciar.

Entretanto, os anos passaram, o tradicional atravessamento já não tem artistas da estirpe do tal “salamurdo”, agora macaqueia-se a noite das bruxas à americana e este património vai-se perder mais dia, menos dia. E, bem merecia preservação. Não sou dado a lamúrias, nem fico afogado nas referências do passado, sei o modo como podia ser construída um indústria cultural em seu torno, isso mesmo o pensei na semana passada quando revivi um fim de tarde pardacento na aldeia, cujos contornos em termos de luz conferiam ao verde chuvoso um cromatismo único e às cortinhas, terra cor de terra, sua própria cor. Um espanto. Se existisse vontade podíamos pensar no exercício de reconstrução fazendo um apelo a um polílogo inter-geracional capaz descrever a causa simbólica e sua representação prática que no antecedente levava a gritos e gargalhadas de comparação entre o visto e o praticado pelos espectadores masculinos, a uma ou outra raiva pela canseira do repor os elementos no seu sítio, a comentários destinados a descobrir os autores das engenhosas travessuras. No geral a receptividade era evidente, animando-se a rapaziada a novos cometimentos na noite do ano que havia de chegar. Dir-se-á: agora não há rapazes, os instrumentos foram substituídos por utilidades mecânicas e a dita noite americana é mais fácil de conceber. É verdade, por isso mesmo impunha-se impedir o mergulho dessa tradição no lodo das poças adjacentes às fontes de mergulho que teimosamente persistem para afago dos meus olhos e reposição memorial das facécias do Patota, dos amorudos encontros em que o galfarro de mãos rápidas as passava nas curvas e pómulos da rapariga do cântaro. Uns gritos, de quando em vez umas bofetadas propiciadas pelos progenitores na filha e resmungos grossos de encontro aos ouvidos do descaroçador. Tudo na sombra, porque a electricidade ainda não tinha aparecido e provocado a desaparição de medos, trasgos, bruxas e entidades correlativas. Felizmente, o senceno ainda não debandou em direcção a Quioto, pois quando nesse fim do dia abandonei Lagarelhos, ele estava a cerrar-se conferindo aos castanheiros em fase final do pingar da antiga moeda – a castanha – um aura de gigantes adormecidos à espera de serem arranhados pela gata Dinah da Alice no país das maravilhas.
Desaparecidas as travessuras, resta-me a Alice, tenho de manter em ordem a escrita, por isso vou rapidamente falar numa feia travessura ocorrida em Santarém, durante o Festival Nacional de Gastronomia. Um dirigente turístico pago por todos nós, muito bem pago, confinou os comeres transmontanos a alguns do Barroso, tendo-se dado ao luxo de rodilhar o prato principal. Uma desgraça. Valeu na emergência o brigantino restaurante “Académico” e o ponto focal de produtos do “Dom Roberto”. Salientes carnes no primeiro, enquanto que as jóias provenientes dos bísaros tornaram feérico espaço do clã “Alberto”, sem esquecer queijos e compotas. A persistência de Alberto Fernandes está a dar frutos e reconhecimento em três continentes, o que muito me apraz, além de ficar a rir, rir de siso ao o ver representado na loja gourmet de “El Corte Inglês” e saber que Fausto Airoldi integra nas ementas por ele concebidas para o restaurante do Casino de Lisboa, “cousas” boas vindas de Gimonde.

PS. Ao que sei o Alberto Júnior tem muito que contar sobre a sua estadia no Oriente. Mas o director deste jornal o saberá falar para contento dos leitores e gáudio para mim.