Transmontano na Diáspora

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Qua, 27/04/2005 - 16:31


É presidente da Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro de Lisboa e, em 2002, esteve na linha da frente da organização do III Congresso dedicado à região. Nascido na aldeia da Cardanha, concelho de Torre de Moncorvo, a 18 de Agosto de 1948, vive e trabalha em Lisboa há 26 anos.

Procurador-geral adjunto desde 1999, Nuno Aires é um verdadeiro transmontano na Diáspora.

Jornal NORDESTE (JN) – Que recordações guarda da Cardanha?
Nuno Aires (NA) – Era uma aldeia onde não havia condições, onde os meninos iam descalços para a escola. Eu, apesar de tudo, já tinha direito a uns sapatos, a lápis e pedras, porque o meu pai era comerciante e havia possibilidades para ter essas coisas.
Atravessei a minha meninice a viver ao lado das crianças pobres da minha aldeia.
Desde cedo aprendi a conhecer o que eram as carências e misérias. Ainda me recordo, quando estava no comércio do meu pai, do que era as pessoas comprarem 5 tostões de café, 2 tostões de pimenta ou 100 gramas de açúcar, onde as pessoas se iam abastecer e mandavam pôr no livro. Só no fim do ano, quando vinham das segadas, é que conseguiam pagar tudo.
Era uma aldeia onde 90 por cento da propriedade estava concentrada em três ou quatro famílias, onde havia 30 ou 40 casas dos chamados remediados e tudo o resto era uma pobreza e miséria.

JN – Onde se encontrava quando se deu o 25 de Abril de 1974?
NA – Estava com mais bragançanos numa Residência Universitária da Mocidade Portuguesa, em Lisboa. Fui acordado à 7 horas com a notícia de que havia uma Revolução. Saltei da cama, vesti-me e fui para o Rossio, porque eu e mais outro rapaz de Bragança já estávamos condenados a sair, pois não tínhamos perfil psicológico para ficar naquela Residência.

JN – O que se pode esperar do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro? Acha que se deve realizar periodicamente?
NA – Os Congressos são uma manifestação de um certo regionalismo. Em Trás-os-Montes temos problemas a mais e não são os Congressos que os vão resolver. Eles ajudam a levantar as questõs, mas o problema é que as conclusões que se tiram não são levadas à prática. Foi assim no I, no II e no III. Penso que o IV Congresso deve ser feito com menos pompa, com menos circunstância, com menos protagonismo e com as pessoas a intervirem desinteressadamente. Deve ser uma assembleia onde se debata e onde cada um possa apresentar o seu ponto de vista.
No III Congresso acho que houve algum medo das palavras. Um Congresso, se não for dialéctico, não é um verdadeiro Congresso. Se não houver discussão e diversidade não há debate. Há convergência e as pessoas dizem aquilo que interessa aos dirigentes do Congresso. Ora, isso não é Congresso. No IV tem de haver mais debate e menos pompa, porque só com diálogo é que as pessoas chegam a conclusões.
Uma assembleia de transmontanos onde não se possa divergir não pode ser um Congresso.

JN – Fale-nos um pouco da Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro de Lisboa
NA – É uma Casa que, do ponto de vista da animação cultural dos transmontanos - dizem as pessoas que não são de Trás-os-Montes - é a maior e a melhor Casa, é a maior representação do regionalismo português.
É capaz de haver algum exagero nisto. Mas, o certo é que surgiu há 100 anos para fomentar o convívio entre os transmontanos, numa altura em que demorava quase uma semana para ir de Lisboa a Trás-os-Montes. Era um clube que os mais ousados decidiram criar para se encontrarem. E, se nessa altura nasceu para o convívio, hoje temos de preservar isso, mas ir mais além em termos de sessões culturais para as pessoas se encontrarem e manterem as ligações.
Fazer a ligação entre a Diáspora e a nossa região é muito importante. Apesar da região não apoiar a Casa de Trás-os-Montes, ela continua ligada umbilicalmente à região e gosta de ter sempre presente a terra, os hábitos e as tradições.

JN – Sente o peso da confluência do Sabor com o Douro?
NA – Não há peso nenhum. Apesar do Sabor desaguar no Douro, é pelo Douro que se vem para Trás-os-Montes. Não se pode separar uma coisa da outra. É como a Terra Fria e a Terra Quente, que são duas terras com a mesma gente.

JN – Pensa que a vila de Torre de Moncorvo tem sido bem tratada pelos governos de Portugal?
NA – Ultimamente penso que sim. Foram tomadas medidas estruturais que vão abrir as portas para o futuro. O acesso àquilo que vai ser o IP2, por exemplo, fortalece o futuro da vila. Agora, temos de pensar em pessoas. A população transmontana está envelhecida, as escolas estão vazias e a desertificação é que é o grande problema, porque sem gente não podemos avançar para lado nenhum.
As acessibilidades, no entanto, são outro dos grandes problemas. Já no II Congresso, que decorreu no Vidago, se falou muito de auto-estradas e está tudo dito. As necessidades estão identificadas há muitos anos.

JN - Costuma dizer que tem uma costela em Gebelim, em Alfândega da Fé…
NA – É a terra do meu pai e foi lá que fiz a preparação para o exame de aptidão ao Liceu. Tive uma professora estupenda que era a D. Otília, que me ensinou muita coisa e que nos tratava com muito carinho. Gostei muito de lá estar.

JN – Por onde passa o futuro das Comunidades Urbanas que foram criadas? Concorda com a separação em Douro e Trás-os-Montes?
NA – As Comunidades Urbanas são uma ficção. Foram uma ficção legal do anterior Governo e, como todas as ficções, está condenada ao fracasso, porque não consegue responder aos anseios das pessoas. Penso que são umas figuras moribundas que estão a despedir-se lentamente, se é que já não estão mortas.
Julgo que não tem de haver separação, porque os transmontanos nunca estiveram separados. Como disse há pouco: “Terra Fria e Terra Quente com uma só gente”.

Entrevista de Marcolino Cepeda, Rui Mouta e Mara Cepeda