Tragédia

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Ter, 03/10/2006 - 16:37


A grandeza que existe na tragédia grega em geral e na obra “Antígona” em particular acontece, essencialmente, na forma como o teatro – muito mais do que um ritual – passa a ser a iluminação da interioridade humana.

Escrita por Sófocles em 411 a.C. a tragédia “Antígona” revela a modernidade intemporal do autor, nas linhas com que a densidade psicológica das personagens é desenhada.
Filha da relação incestuosa de Édipo e Jocasta, Antígona enfrenta firmemente a injustiça e a tirania de seu tio Creonte, novo rei de Tebas, consciente de que tal atitude lhe trará a mais terrível das condenações. Creonte proíbe que se dê sepultura ao corpo de Polinices (irmão de Antígona, morto no campo de batalha), por este ter querido fazer valer os seus direitos ao trono tebano. É então ameaçado de morte todo aquele que desrespeitar a ordem do rei. Porém, Antígona, na sua grandiosa firmeza de alma, faz frente ao despotismo de Creonte e cuida piedosamente dos restos mortais do irmão. Esse procedimento levá-la-á a ser condenada a uma morte em vida, já que o rei ordena que Antígona seja encerrada num sepulcro cavado nas rochas.
Consciente da angustiosa experiência que espera Antígona, Hémon, seu noivo e filho de Creonte, pede ao pai que revogue as ordens dadas, explicando-lhe que “todas as árvores que se dobram à corrente conservam os seus ramos; as outras, as que não cedem, são arrebatadas com as próprias raízes”. Mas Creonte, surdo às súplicas de seu filho, mantém, inflexível, a condenação de Antígona: “Quero que a levem para um local deserto, que a encerrem num antro de pedra, dentro de um rochedo (…). Nesse antro, ela não deixará de rezar a Hades [deus dos mortos], o único deus que adora, e certamente dele conseguirá que não venha a morrer. Mas, ao menos, julgo eu, aprenderá que é inútil empresa venerar os mortos”.
Hoje, neste rectângulo de lusas terras, 2447 anos mais tarde, a versão pragmática das palavras do velho tirano mostraria que a cera é cara e os defuntos ruins. Numa demonstração do poder como desígnio absoluto de quem exerce a sua verdade, sem pôr em causa as razões, sem questionar os comos e os porquês e sem procurar soluções capazes de transformar os problemas. Em 411 a.C. como agora, numa ou noutra latitude, as medidas que enformam o ser humano são as mesmas – seja na simplificação das perspectivas ou na complexidade das resoluções.
Na semana passada, a comunicação social regional deu conta do caso de uma grávida em trabalho de parto, vinda de Carrazeda de Ansiães, que foi assistida, na ambulância que a trouxera do seu concelho, por uma equipa da VMER de Vila Real. Sabendo-se que a parturiente se encontrava, nesse momento, a dois minutos do Hospital de Mirandela, onde era suposto que estivesse (como ficou estipulado, após o encerramento da maternidade) um enfermeiro em permanência para receber parturientes enviáveis para Bragança ou Vila Real, a situação é tão incompreensível quanto absurda. Inexplicável, espero que não seja, porque uma explicação da entidade responsável seria mais do que conveniente – embora até ao momento em que escrevo ela ainda não tenha acontecido. Como acreditar, então, nas enfastiadas palavras do Ministro da Saúde que fingia convencer o país de que “o encerramento de uma sala de partos é sinónimo de melhores cuidados de saúde”?
Em “Antígona”, quando Creonte proclamara a interdição de dar sepultura ao corpo de Polinices, o seu objectivo era “matar de novo” um cadáver, infligindo-lhe uma segunda morte. Mas o abuso de poder perpetrado por Creonte constitui um desafio que os deuses não lhe perdoarão. E aí, nessa denúncia da tirania, surge clara a consciência democrática ateniense do autor da obra, Sófocles.
Abalado pelas palavras do velho sábio Tirésias, que lhe mostra que “todos podem errar, mas aquele que errou provará que não é louco nem desgraçado se buscar remédio e não persistir no erro”, Creonte sente que a sua convicção de punir vacila: “Ceder não é menos terrível do que resistir e deixar que a insolente alma marre na desventura”.
Desventurosa é, agora, a concepção da melhoria dos cuidados às parturientes, quando ela – por falta de planeamento, de logística e de meios técnicos – não só falha nas situações mais comuns, como pode desencadear problemas para os quais não aparenta ter soluções. Se o Ministro aponta como argumento para o encerramento de maternidades a alta mortalidade perinatal (que inclui o período entre a 22ª semana de gestação e a primeira semana depois do parto), como podem os transmontanos aceitar que a assistência às grávidas possa ser feita de forma tão improvisada e carenciada dos meios técnicos e humanos de um hospital? Ou seja, em nome de uma apregoada “melhoria”, piora-se o que de menos bom já existia. Teimando-se em não destrinçar as questões específicas de um problema (?) geral. Porque o distrito de Bragança é quase único nas suas particularidades geográficas, demográficas, logísticas e viárias.
Mas o arrependimento de Creonte já não é capaz de suster toda a cadeia de acontecimentos que sobre ele se abaterão. E só, no seu palácio vazio de vida, maldiz o destino. La fora, os anciãos do coro – vozes lúcidas da verdade – lembram que “fonte de toda a felicidade é a sabedoria. Não se deve ser ímpio para com os deuses. As acções orgulhosas e arrogantes causam males infinitos aos soberbos que, idosos, duramente aprendem a ser sábios”.
É preciso fazer mais desenhos?