As suecas já não são o que eram!

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Ter, 12/09/2006 - 16:43


Durante a primeira metade dos anos 60, em parte por motivos de libido recalcado, em parte por outros alicerçados no desejo de liberdade, de romper barreiras invisíveis mas bem fortes que manietavam a juventude bragançana, não perdia um único filme no velho Cine-Teatro Camões onde entravam suecas.

Apesar da censura retalhante das fitas, sempre dava para ver louras polpudas, olhos prometedores, bocas esfaimadas e seios protuberantes. Nessas noites gloriosas, depois do filme, ficávamos a desbaratar palavras imaginando o viver na Suécia. Recordo ainda o bailado de passos com que dava voltas pelo centro da cidade deserto nas noites invernais, percorría a Rua Direita, a Abílio Beça e muitas outras ruas e vielas, e que, por fim, repleto de pensamentos agradáveis recolhia a casa, desobrigando-me de dormir com as mãos de fora dos lençóis. Os viajantes e um ou outro mais informado falavam da presença de suecas no Algarve, descrevendo fantásticas aventuras sem necessidade de grandes conhecimentos linguísticos ou trabalhos de conquista. Dos filmes, ficou-me na memória um pobre italiano despedido por uma sueca exuberante, o qual em desespero de causa chora junto a um lago, tendo agravado a situação porque não resistiu em apanhar um pato confiado nas boas maneiras dos passantes. Creio que me terá ficado também a pairar na cabeça o desejo e uma pergunta: quando iria à Suécia ver com os meus próprios olhos o Paraíso, colher com as minhas próprias mãos os pómulos desafiantes e beijar seivosamente lábios ávidos e cintilantes? No início dos anos 80, fui passar uns dias a Estocolmo. Durante a viajem revi as fitas do prazer misturando-as ininterruptamente com as do grande Bergman ou não tivesse sido fervoroso cine-clubista, não tendo esquecido a belíssima Bergman do Bogart, mas bem presa ao pesado Rosselini. Desembarquei, o meu olhar ia-se demorando pelo amplo espaço enquanto os viajantes se apressavam a sair, até cumprimentar a senhora a qual fiquei entregue durante a visita de trabalho. Faces femininas agradáveis, dentaduras perfeitas, olhares profissionais a desencorajaram a mais pequena ou ténue tentativa de aproximação proporcionaram-me toda a casta de informações e guiaram-me exemplarmente. Fora do apertado programa também nenhuma semelhança percebi em relação aos filmes do desejo, mesmo na altura das últimas rodadas. No regresso torneei a decepção atribuindo o fracasso à natureza da estada em Estocolmo. Voltei mais vezes à Suécia, estive no “castelo” de Hamlet, em Malmö, em Gotemburgo e não me lembro de ter encontrado alguma sueca disposta a cair nos meus braços só porque a fixei demoradamente e bati as pestanas à Stauffer a olhar a Joan Fontaine em “Carta a uma desconhecida”. Lembram-se?
Os sucessivos desaires levaram-me a elogiar as finlandesas, as dinamarquesas e norueguesas, apostrofando as suecas de arrogantes. Mas a mágoa ficou. Neste calorento Agosto tornei a pisar as calçadas da chamada Veneza do Norte. Fui ao Museu Nacional, a mais dois museus pequenos, depois tratei de bater galerias de arte e cafés em demanda não da pedra filosofal ou do Graal, mas na esperança de contemplar netas das louras de antanho, de modo a dissipar as imagens que estão em suspensão diante de mim há mais de quatro dezenas de anos. O sol sublime convidava à observação, num verdoso parque sentei-me num banco estrategicamente colocado à entrada. Lá permaneci umas duas horas. Muitas crianças, avós, parzinhos entrelaçados, hordas de turistas a relincharem e eu feito bonzo. À noite, no bar do barco onde já estava tudo calmo, recordei ainda mais a Bragança desses anos circulares, as saudades que não tenho, e a minha disposição naturalmente alegre levou-me a concluir que as suecas já não são o que eram, pois os filmes não mentem, não enganam, fazendo sonhar a realidade a rapazotes de 18 e 19 anos vivendo num gueto cultural e social. Sem lágrimas e suspiros, homenagem ao grande Ingmar, escrevi postais feéricos de Estocolmo.
Armando Fernandes
PS. O artigo evocando o Michelim aparece com um dois em numeração romana, apenas porque dificuldades no envio a milhares de quilómetros obrigaram à sua repetição já em Portugal.
Nesse mesmo artigo em vez de porque, surge “por que”. Aos leitores as minhas desculpas pelo solavanco no teclado.