Só se lembram de Santa Bárbara quando “trevoa”, ou nem isso

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Qua, 24/08/2005 - 15:38


Das minhas recordações de infância, retenho na memória as temíveis trovoadas de Verão. A minha mãe rezava pela casa, enquanto fazia os trabalhos domésticos: Santa Bárbara Bendita/que nos céus estás escrita/ cum papel e água benta/ livrai-nos desta tormenta.

Ou então aquela de mandar a trovoada lá p´rá serra do Marão onde havia apenas uma serpente, com muitos filhinhos, que nada tinha para lhes dar a não ser água de trevão e leite de maldição. Estas preces, balbuciadas num ritmo cadenciado, quase imperceptível, eram coadjuvadas pela presença de uma imagem de Santa Bárbara, colocada à pressa no peitoril da janela, bem virada para o temporal, e cuja função prioritária era servir de tampa a uma talha de azeite onde a mãe guardava os enchidos. Na minha inocência de menina, um dia disse à mãe que a Milagrosa Santa Bárbara só saía das “portinhas” quando trovoava. A mãe esboçou um sorriso que, na altura, não compreendi.
Numa das minhas recentes idas a Sambade represtinei esta situação, quando ouvi responsáveis políticos a irem buscar a sua Santa Bárbara para que arramasse a trovoada da seca e do fogo lá não sei para onde. Compreendi melhor a falta da água e o tipo de economia que se vive ainda por aqueles lados. A água secara também nas ribeiras e os poucos lavradores (poucos e muito envelhecidos) davam voltas aos miolos para desencantar uns cantarinhos de água para que o renovo não secasse.
O Nordeste mergulhou numa noite de que se não vê o fim à vista. As soluções dos muitos problemas continuam a ser adiadas. E não consigo descortinar o que se pretende para esta região. Penso que os sucessivos governos também não têm sabido ou nem terão pensado nisso. No entanto, há mais de três décadas realizaram-se estudos sérios que teriam evitado muitos dos males de que enferma a região. Refiro-me aos estudos preparatórios do IV Plano de Fomento.
Este Plano começou a ser preparado em 1971 e englobava um período de seis anos.(No Portugal dos anos 50 até à revolução de Abril, a economia do País aparece estruturada em Planos de Fomento, a exemplo de outros países da Europa.) Alguns dados relativos à região de Bragança:
70,9% da área do Distrito de Bragança é designada, nos documentos, como área “com utilidade agrícola”, da qual apenas 2,3% estava em regadio. Dentro desta conjuntura, perspectivava-se então que, dos 700 000 ha do Distrito de Bragança, 275 000 seriam perfeitamente mecanizáveis.
A reconversão do sistema de regadio era uma prioridade. “... a água caída na Sub-Zona Interior, desde que convenientemente armazenada, poderia regar 380 000 ha, considerando uma dotação média de 4 000 m3 por ha e por ano, o que nos parece mais que suficiente para as necessidades requeridas (...) Nesta ordem de ideias e numa primeira aproximação presume-se ser possível melhorar ou submeter ao regadio toda a área considerada com aptidão agrícola (...) dos quais correspondem cerca de 250 000 ha ao Distrito de Bragança.”
O Vale da Vilariça; Macedo de Cavaleiros, Alfândega da Fé e Mirandela foram classificadas como áreas de desenvolvimento agrícola integrado, ou seja, áreas beneficiadas por grandes obras de Fomento hidro-agrícola. (A recente comunicação ao País de um Ministro que apresentou a proposta de rega do Vale da Vilariça como algo de inédito, de grande novidade, um coelho saído da cartola já tem mais de 30 anos).
Entretanto, o armazenamento das águas não se fez, as barragens vão sendo esquecidas e o desenvolvimento da região Bragançana continua a ser adiado. (A falta de água que se tem feito sentir na zona também prova o pouco poder reinvindicativo dos transmontanos, pacíficos, tolerantes, sofredores, com um perfil bem diferente a daquele que nos traça Abade Baçal).
Convém aqui referir o Relatório de Propostas da Câmara Municipal de Bragança, na altura. Na introdução do documento, a edilidade indica as suas pretensões: Apenas pretendemos: Que esta zona não seja esquecida; que ela não fique cada vez mais deserta; que não aumente o desequilíbrio já existente; que os seus problemas sejam devidamente ponderados de modo a não a tornar incapaz de recuperação.
Volvidos que são mais de trinta anos, as expectativas das gentes nordestinas transformaram-se em desencantos. Esta região ficou cada vez mais esquecida; ficou cada vez mais deserta; cada vez mais se acentuou o desequilíbrio; os seus problemas não foram ponderados, de esquecidos; a recuperação da região será impossível.
Julgo que, cada vez mais, ficamos para lá dos montes, muito longe das comodidades a que quem manda está habituado. Também penso que quem tem responsabilidades desconhece a realidade que se vive, sobretudo nas comunidades rurais do interior. As Zonas do interior estão desertas e extremamente envelhecidas. (Em 1973, 56% dos trabalhadores rurais do Nordeste tinham mais de 55 anos. Os que ainda vivem terão 80 ou mais).
Os responsáveis pelo atraso sucessivo na nossa região lá andam entretidos em jogos de cadeiras, em “ora agora ficas tu, ora agora fico eu”, num lendário País de meia dúzia, e quem não está bem que se ponha. Os que a região elegeu, desde que tenham a sua cadeira, se não puder ser poltrona, esquecem a região que os elegeu na primeira passagem de águas, a exemplo de certos esquecimento que poderemos encontrar na literatura clássica ou nos contos maravilhosos de Propp.

Lourdes Graça Camelo Silva