Presentes de Natal

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Ter, 19/12/2006 - 16:10


Quem dera que eu não me lembrasse – mas lembro. Assim, não teria a nítida imagem de uns pés nus, de sola calosa por nunca terem sido calçados, a quebrarem o carambelo produzindo um ruído igual ao do rasgar um cartucho depois de lambido por lá ter estado açúcar amarelo comprado no comércio do Sr. José, de Paçó.

A desolação de água e lama marcavam os caminhos de Lagarelhos. Os pés varavam o lodo enquanto a dona fazia saltar a filha pequena por cima das poças de água cavadas pelas patas das vacas, e esta choramingava pois o frio feria a pele, enquanto os andrajos a fazerem de roupa eram escassos e ao rirem-se mostravam partes do corpo da transida criança. Era dia de Natal. Na noite anterior tínhamos comemorado o aniversário do nascimento do Menino¬-Deus, comendo saboroso polvo panado com muito ovo à volta, bacalhau cozido com suculentas batatas e couves taludas, queijo a sudar a cabra, muito branco e, porque sim – o lambisco – de marmelada, que a minha avó tinha feito muito bem e agora me dava, por o Filho do Homem ter nascido nas suas palhas de opróbrio, tendo como companhia um burro e uma vaca. Muitos anos mais tarde, percebi a jugosa zombaria de um religioso jagodes quando dizia: o Menino abriu os olhos, viu os dois animais e terá exclamado – esta é que é a companhia de Jesus! Na altura, na varanda da minha casa, enquanto ouvia a lamúria das duas vozes a dizerem aquilo que não era necessário dizerem – serem mais pobres que os pobres-de-pedir – a súplica acerada trespassava todos os outros ruídos. Elas ficaram à espera, carregando desgraças – a figura enérgica da minha avó surgiu na porta, na mão trazia um chouriço de verde, uma larota e um reizinho, dos meus. Mandou-me entregar os presentes. Assim fiz. Estendi-os à mulher, menos o reizinho, reservei-o para a menina, cujas faces roxas de frio estavam lambuzadas por um molho de gelo e ranho. Desceram os dois degraus das escadas às arrecuas, agradecendo naquela litania chorosa. Enquanto se preparava para irmos à missa, a bela minha avó murmurava contra a miséria, não se esquecendo de me explicar a razão de ter tirado o chouricinho do meu tesouro – tinha de aprender a dar. Não fiquei muito convencido. “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” cantaram na Igreja as mulheres e as raparigas acompanhadas por meia-dúzia de vozes masculinas incluindo a do Padre Aurélio que não era muito centrada, nem potente, esganiçada seria. Todos os anos assim cantavam. Finda a missa, deitei um olhar ao Menino cercado de cordeiros de barro a pastarem no musgo, enquanto a estrela dependurada indicava o caminho ao Magos, soltei os pés em correria pelo adro fora de forma a marcar as botas novas de carneira, mas sustive o esforço, porque no cabanal frente à casa da bondosa Tia Maria Teresa, a mulher dos pés surrados, afadigava-se a avivar o lume ladeado por dois potes negros. Estaquei. Detive-me a ver, a observar. A criatura nem para mim olhou, estava concentrada na tarefa de preparar a refeição. Talvez o reizinho fosse alegrar a comida da menina, assim o pensei. Se assim fosse já estaria recompensado pela diminuição do meu fumeiro privado. Nada mal. Mas ao tempo, na aldeia, os meninos concediam grande importância aos proventos provenientes de um desastre no enchimento das tripas. Por isso, rezava para que elas rebentassem. Nunca o confessei, faço-o agora, porque o Menino Jesus de Lagarelhos além de ser o mais lindo do Mundo, sempre sorriu das minhas maroteiras, quando O beijava. E já lá vai um alqueire de anos. E, acreditem, tenho visto outras imagens d’Ele, muitas, em quatro continentes, mesmo o da minha adolescência da Sé de Bragança, é um nadinha menos bonito. Todos nós temos o nosso Menino. Bom Natal.