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Posses e poses

Ter, 08/11/2005 - 16:08


Nestes últimos dias, os jornais e as televisões têm-nos facultado palavras e imagens das tomadas de posse dos autarcas recentemente eleitos.

As tomadas de posse têm uma finalidade política, deliberada e consciente. Nas suas formas mais gongóricas ou sumidas essa finalidade é, sempre, perfeitamente evidente. Temos o caso, por exemplo, dos discursos inflamados e de linguagem primitiva, alguns dos quais com a finalidade prática de serem ajustadas contas passadas e presentes, ou de discursos destinados a aplacarem iras, a proporcionarem entendimentos futuros e a servirem de enunciação de propósitos. Mas afigura-se-me provável terem todas as tomadas de posse uma grande expressão de pose de todos quantos nelas participam, mesmo dos figurantes que só aparecem na esperança de serem vistos ou notados.
No princípio da década de sessenta, assisti, por dever de circunstância, a duas ou três cerimónias dessas no salão do Governo Civil de Bragança. Não sendo actor principal nem secundário das peças em causa, não sendo figurante, apenas obrigado espectador, colocado na última fila dos penantes em pé a ouvir as perlongas oratórias de carecas luzídias ou abrilhantinadas cabeleiras, deleitava-me a observar os circunstantes e, a devotar-me ao dever de intuir o papel de cada uma das personagens presentes.
Não me posso esquecer do coronel Salvador envergando uma farda puída, dona de galões amarelecidos pela velhice, a segurar chapinhas prateadas e douradas chamadas medalhas, levando como escolta a sua volumosa mulher envolta em peles de raposa. A Senhora Dona Luísa de olhos semi-cerrados revia o mundinho a seus pés, entre respeitosos beijos e veniados cumprimentos de mãos a apertar a luva de pelica. Noutro lado imperava o Coronel Machadinho escorado no apoio cuidado do Capitão Subtil. Outras fardas profissionais fazendo oscilar as chapinhas acotovelavam-se respeitosamente, levando sempre em consideração a prevalência dos galões, já que às divisas estava o espaço interdito, sendo-lhe apenas confiada a tarefa de vigiarem a entrada, não fosse entrar um descuidado ou desbocado sem tença ou mantença.
Nas ditas cerimónias destacava-se pelo conhecimento do protocolo o Doutor Carmona e Lima. Devia divertir-se imenso ao contemplar tão ridículos espectáculos. Coimbrão até à medula, monárquico, ligado a famílias de teres e haveres, sem esquecer os fios grossos ao poder da corte salazarista. Um governador civil entendeu instalar desconforto nas relações com o Dr. Carmona e Lima, gerando-se apostas no “mundilho” do Chave d’Ouro sobre qual iria ganhar a contenda. O governador teve direito a cair em desgraça, o Dr. Lima a continuar os seus trabalhos de leitor infatigável.
No sortido dos assistentes, os “kapos” da Legião Portuguesa apareciam fardados de azeitona e a mostrar o correame. Só lhes faltava a taifó, para serem simiescos émulos de Mussolini. Um deles, entretinha-se a enfiar na boca, os macacos que tirava do nariz. Os cavalheiros da União Nacional apresentavam-se ou de fato completo, nó de gravata suspirado, numa ou noutra florescia uma pérola, ou de casacão preto e calça cinzenta listada, sem esquecer o complemento do colete a condizer.
Todos representavam ares graves, complexos, entendidos e alicerçados nos queixos levantados. Enquanto perorava a celebridade empossada ou de visita, ao mais leve rumor do tafetá ou da talagarça, os mais devotos franziam o sobrolho, não mandando silenciar o piar dos passarinhos por ser impossível. As presenças femininas não eram muitas. Uma ou outra merecia remirado tempo de contemplação e pensamentos em consonância.
Entre as cerimónias de então e as do presente há evidentes e grandes diferenças – a primeira reside no facto de ninguém ser obrigado a nelas participar -, a segunda está ancorada na possibilidade de podermos manifestar o nosso apoio ou não aos empossados. Sobre as poses, bem aí, a experiência concede-me a possibilidade de dizer com segurança, de não existirem diferenças. As vestes, os olhares, as vaidades, as irritações por causa da cadeira, o “atiranço” à fotografia e/ou à imagem televisiva, agora até são mais ostensivas e agressivas. Nesse emaranhado das posses e das poses, quando me vejo envolvido nele, nunca me esqueço do Dr. Carmona e Lima, não resistindo a dar vazão ao meu humor acídulo quanto baste, mesmo correndo o risco de colher sobrancelhas irritadas pelo facto de me rir impudicamente. Eles, não gostam e temem o riso!