Polícia mirandês

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Ter, 08/11/2005 - 15:52


Quando saiu de Sendim, aos dez anos, para estudar num seminário de Bragança, Amadeu Ferreira estava longe de imaginar que chegaria a vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), a “polícia da Bolsa”.

Não teve uma adaptação fácil à vida na cidade. Foi gozado pelos outros miúdos pela forma como se expressava: falava mirandês, língua confinada à região de Miranda do Douro, que sobreviveu ao passar dos séculos através da tradição oral e que, só em 1998, foi considerada língua oficial pelo Estado português. “Passei o primeiro mês em Bragança a chorar”, recorda.
Dominar o português tornou-se uma obrigação, uma questão de honra. Na altura, representava o estatuto das gentes de Miranda. Mas cedo Amadeu Ferreira percebeu que não era a sua língua. Quando voltou para perto da família, no Natal, não foi capaz de falar em português. A mãe disse-lhe: “Alhá como alhá, cá como cá” (lá como lá, cá como cá). E o mirandês continuou a ser a língua familiar. É assim que fala com os dois filhos.
“Ainda hoje há palavras que não consigo traduzir para português, como os nomes de determinadas ervas”, afirma. Com dez anos também não imaginava que seria um dos maiores especialistas de mirandês, responsável pela sua preservação e expansão. Um dos resultados mais mediáticos da dedicação à língua materna foi a recente edição em mirandês de um dos livros de Astérix. Os primeiros quatro mil exemplares de Asterix, l goulés esgotaram pouco depois de serem postos à venda, pelo que há mais 1500 a caminho. Autor de numerosas obras em mirandês - poemas, peças de teatro, traduções das Escrituras ou de Os Lusíadas - também ensina a língua.

Comendador da Ordem de Mérito

Foi parar à CMVM “por acaso”. Depois de quase ter concluído o curso de Filosofia, no Porto, seguiu para Lisboa para estudar Direito. “Quando fazia o mestrado, a minha mulher adoeceu, o que me fez faltar e chegar atrasado às aulas. Cheguei atrasado quando distribuíram os temas para o trabalho e tive de ficar com o único que ninguém queria escolher: ‘Ordens de Bolsa’” era a matéria a desenvolver. Pouco sabia do assunto e a informação disponível era quase nenhuma. “Agarrei o tema e apaixonei-me. Descobri um mundo desafiante no Direito”, afirma.
Só se apercebeu da real importância dos mercados de capitais quando, em Sendim, a mãe lhe disse que estava a pensar pôr “um dinheiro, pouco, nos correios”, cuja tradução era comprar fundos de investimento. “O mercado estava a chegar às aldeias mais longínquas e humildes de Portugal”, lembra.
Concluído o mestrado, foi convidado a integrar os quadros da CMVM, passando por diversos departamentos até chegar, há poucos dias, a vice-presidente. Nos mercados e na defesa da língua é um pioneiro. Foi responsável pelo aparecimento de disciplinas relacionadas com os mercados de capitais nas universidades e, enquanto presidente da Associação da Língua Mirandesa, foi agraciado pelo Presidente da República comendador da Ordem de Mérito.

Pedro Lima - Expresso