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Pelo SIM

Ter, 06/02/2007 - 11:54


O meu filho mais velho, que anda no sétimo ano, acabou de aprender, na disciplina de História, que o regime democrático nasceu na Grécia, na cidade-estado de Atenas, há quase três mil anos.

Espantado com a descoberta – porque só tem doze anos e já viu muitos filmes americanos – disse-me que sempre (!) pensara que a democracia era muito mais recente e que julgara que tinha sido criada pelos Estados Unidos. Percebe-se porquê: afinal, já viu muitos filmes americanos e só tem doze anos.
O que me parece menos compreensível é que, vivendo nós num regime democrático, onde existem partidos políticos e o inerente princípio da representatividade democrática, surjam situações de verdadeira desresponsabilização política. Como aquela que implicou que a Assembleia da República – onde o Partido Socialista tem maioria absoluta – não tivesse sido capaz de fazer aprovar a despenalização, às dez semanas, da Interrupção Voluntária da Gravidez. Tendo em conta que o próprio secretário-geral do PS, José Sócrates, não só assumiu a sua posição favorável, como, de forma clara, apelou à despenalização, interpelando os jovens a que olhassem o problema e percebessem a absoluta necessidade de alterar a lei de 11 de Maio de 1984.
Parece-me, portanto, que há aqui uma questão que tem, forçosamente, de ser levantada. O recurso ao referendo é uma prova de que o referendo só é necessário pela discussão dos muitos problemas que estão na origem e nas consequências do aborto clandestino. Se os deputados não votaram – como poderiam legitimamente ter feito – a despenalização da Interrupção voluntária da Gravidez até às dez semanas por considerarem ser essa uma matéria dependente da consciência das mulheres implicadas (e dos homens implicados, não?), essa ocorrência determina, por si só, o carácter íntimo e pessoal daquilo que está em causa.
Por isso, insisto, acho revoltante que a representatividade política de que se investe a Assembleia da República não tenha tido a coragem de assumir uma atitude coerente com a posição assumida pela maioria dos sus elementos constituintes.
Ficou-nos o Referendo, portanto. E com ele, um chorrilho de gritos esganiçados e de rangeres de dentes hipócritas. Curiosamente, são os homens quem mais opina, e logo eles, que, à luz da lei em vigor, ficam confortavelmente esquecidos nos casos de interrupção voluntária da gravidez, como se algum legislador ainda acreditasse em certa obra e graça….
E muito se opina, entre argumentos que relevam do surrealismo (“se o Sim ganhar, abortar vai ser tão normal como comprar um telemóvel”) e roçam o pseudo moralismo primário de quem avalia o mundo do alto do seu aconchego de uma vida confortavelmente bem posta (“é uma alegria ser pai e ir buscar os meus três filhos ao colégio”).
Como se as mulheres abortassem por desenfastio; como se começassem a abortar desenfreadamente pelo facto de passar a haver despenalização; como se não tivesse sempre havido abortos, apesar da penalização; como se alguém pudesse ajuizar ou avaliar situações de dor, de solidão, de sofrimento de outrem, retirando daí “elevadas” lições moralizadoras. Como se interromper voluntariamente uma gravidez não fosse, por si só, um acto de auto-punição.
E, curiosamente, os que embandeiram pelo Não alinham numa posição tanto mais contraditória quanto inútil, quando afirmam que são contra a prisão das mulheres que abortam, persistindo em votar contra a despenalização. Como se uma coisa fosse compatível com a outra. Como se só o voto no Não fosse a prova inequívoca de que se é contra o aborto (e haverá alguém mentalmente são que não o seja?). Como se a não despenalização das mulheres pudesse implicar uma hipócrita renúncia à condenação. Como se fosse possível ou juridicamente desejável ou eticamente aceitável defender um “crime sem castigo” em nome de uma suposta “caridade” para com os pecados alheios.
Não basta dizer que ninguém deve ser castigado pela prática de um aborto; e pronto. Porque a questão do aborto clandestino continuaria a provocar gravíssimos problemas de saúde. Mantendo-se situações de profundo desequilíbrio entre as mulheres com poder económico que se podem deslocar, em segurança, a clínicas no estrangeiro (e em Portugal – porque o aborto clandestino constitui um mercado paralelo) e todas as outras que se sujeitam a indescritíveis situações de sordidez e perigo. E inclua-se a Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde, sim. Não será isso compatível com os nossos impostos? Sê-lo-á, certamente. A julgar pelo desperdício do erário público (desde viagens pessoais até submarinos nacionais), será certamente uma questão de gestão.
Há dias, o meu filho mais novo, que anda no sexto ano, mostrou-se espantado por achar que eu era a favor do aborto. Expliquei-lhe que, por mim, ninguém abortaria, porque seríamos todos felizes, com uma existência preenchida e maravilhosa. Mas ele, que tem onze anos, sabe – sem ainda o sentir – que o mundo é um local terrivelmente imperfeito. Por isso, disse-lhe que era importante que às mulheres que sentissem que deveriam abortar, o Estado dessas as condições correctas para o fazerem.
E o meu filho mais novo, que tem onze anos, percebeu isso.