Qua, 31/01/2007 - 10:58
A excitação levava os mais velhos – homens a praguejar dentro do habitual mas em tom de alto-falante, mulheres esganiçadas repreendiam e davam bofetadas nos irrequietos filhos, os mesmo mais velhos a abriam a boca e especavam os olhos no céu. Nós, o rapazio mirava e remirava as raparigas opulentas de formas ou as desnalgadas, com os pés e tornozelos envolvidos em soquetes brancos e metidos em sandálias e sapatos, alguns deles desdentados. Entusiasmados brincávamos aos pára-quedistas atirando ao ar, o mais alto possível, os mais ou menos ranhosos lenços de assoar, cujas pontas tinham nós de modo a segurarem os fios enlaçadores da pedra pára-quedista. Uma gozação completa. Falava-se dos pára-quedistas, do seu papel nas guerras, do brilhantismo dos boinas verdes de Bragança, autênticos émulos de Cid, ou então cowboys dos ares, capazes de mil proezas na nossa mente de adolescentes consumidores de filmes onde John Wayne comandava, lutava e era invencível. Falávamos de Argentino Seixas, Heitor Almendra e outros como se os conhecêssemos ou eles nos colocassem a mão sobre a cabeça numa espécie de unção redentora a conceder-nos no futuro o direito a usarmos a farda cinzenta, a emblemática boina e a calçarmos as botas de muitos nós e atacadores emaranhados onde um podia espelhar-se. Na altura, pára-quedistas significava transmontanos, sendo eles em número avultado nos diversos escalões desse corpo de elite, ou não vivêssemos à míngua na maioria dos estratos sociais, a justificar a apetência pela tropa, a polícia de todos os quadrantes, guarda republicana e fiscal em consonância, sem esquecer a tradicional exportação de criadas de servir e não só. Mas nesse dia não sabia dessas e outras coisas, ainda não tinha lido “Os Centuriões”, “Os Pretorianos” e outros livros do género a exaltarem as tropas especiais, nem tinha soltado gargalhadas e continuo a soltar, ao ler e reler o anti-herói e símbolo da argúcia contra o militarismo que é “O Valente soldado Chveik”. Ainda não percebia na totalidade a bazófia dos incultos milicos na exibição da farda no Flórida, todos impantes a levantarem o peito descaído e olharem por cima do ombro a apontarem o filete dourado de modo a impressionarem as incultas professoras milicianas* que roçavam as saias nas cadeiras do café enquanto esperavam um casamento medianamente rico. Eles também. A maioria delas e deles conseguiram grandes fracassos nessa procura, na altura pecando por orgulho, vivendo agora, certamente, uma meia-vida estribada numa reforma resultado de empregos administrativos ou similares. Os milicos não possuíam a ossatura dos pára-quedistas, por isso, tentaram obter protecção nos quartéis da guarda republicana ou fiscal. Alguns obtiveram-na. Nesse dia todo o interesse residia no acompanhar a descida das estrelas locais, destras no manobrar o pára-quedas, calcular o salto e impecáveis a marcharem logo a seguir. Os bombeiros estavam ao longe de prevenção, os da GNR apesar do clima de festa não largavam as canhotas, os polícias suavam apertados nos colarinhos de fibra cinzenta, as senhoras e os senhores em lugar próprio como sempre assim foi e continua a ser, apuravam o ouvido de modo a perceberem o ronco do quadrimotor que trazia no seu bojo os pássaros humanos. O avião rompeu as nuvens, os “anjos verdes” soltaram-se a modos de fogo de artifício, lentamente, lentamente quais lágrimas chegaram até nós, sem mostras de exaustão ou amachucados finda a faina. Radiantes e felizes, corremos para a cidade em delirante algazarra. Pelo outro dia, um rapaz dos Batoques, ensaiou um salto recorrendo a um lençol. A proeza granjeou-lhe uns arranhões e nódoas negras. O muro não tinha muita altura. Mas lá que ele foi um herói, isso foi.
* O termo “professores milicianos” pertence a Fernando Pires. O seu a seu dono.