Os paradoxos das autárquicas

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Ter, 25/10/2005 - 16:07


Mais do que um acto cívico expresso através do voto livre, as eleições autárquicas do passado dia 11 de Setembro tiveram a particularidade de, a traços grossos, vincar a indisfarçável purga que mina a nossa sociedade: a crise de valores em que este povo submergiu.

A minha apreciação sobre esta eleição cinge-se, apenas e só, pelo exíguo conhecimento que possuo da mais nobre das artes, a política, a aspectos que lhe são supostamente laterais; devendo ficar, por esse facto – assim entendo que deve ser –, reservadas as várias leituras do facto político a quem verdadeiramente é versado na matéria.
Entendo, pois, por “questões laterais”, entre outras, os vários paradoxos manifestados durante a campanha eleitoral, decorridos num nível transversal, e resultantes da complexa dimensão psicológica dos principais agentes da política (candidatos/eleitores, numa relação binómica), num país cuja orientação espiritual assenta maioritariamente em códigos sociais próprios da cultura judaico-cristã.
O primeiro paradoxo reside na própria palavra candidato. Este vocábulo provém do adjectivo latino candidus, que significa, na sua acepção primitiva, branco. Como esta cor simboliza, intemporalmente, a pureza e a isenção de mácula, os candidatos de então propunham-se atingir os mais altos cargos da vida pública de Roma, trajando vestes brancas, como forma de exibir as máximas virtudes do espírito: honestidade, honradez, verticalidade, seriedade, etc.
Trinta e um anos após a conquista da liberdade, em pleno século XXI, a palavra candidato foi, na lusa pátria, completamente desvirtuada, ao permitir-se – a responsabilidade é repartida por quem legisla e pelo povo, que alimenta os caprichos de certos autocratas sem escrúpulos – que pessoas com condutas sociais duvidosas, e a braços com a justiça continuem a “ditar leis” em regimes fundados no mais puro caciquismo tribalista.
Porém, para conforto daqueles para quem a vida se pauta e norteia pelos mais elevados valores, serviu-nos de conforto (eu experimentei essa sensação) a firme posição do líderes políticos, da Esquerda à Direita, em relação aos dissidentes/escorraçados partidários – os mesmos que, no discurso triunfal, nos “deram uma lição de democracia” – ao não pactuarem com aquilo que o bom senso reconhece como sendo uma das grandes nódoas da democracia: o poder a qualquer preço.
Estranhamente, ainda que num nível diverso, o outro paradoxo reside na forma como o povo (o genuíno) cada vez mais, de forma preocupantemente apaixonada e cega, se envolve nas campanhas eleitorais, em defesa sabe-se lá do quê!
Como se sabe, é essencialmente nos meios rurais, muito por culpa de razões de mera sobrevivência colectiva, que o sentido comunitário, o valor da amizade, da partilha, da solidariedade, do respeito pelo próximo, etc., mais se solidificam, mais se enraízam e mais força ganham.
Com efeito, este inestimável legado, em consequência da política, ou melhor, de forma pouca elevada como muitos sujeitos a ela se entregam, tende a perder o vigor e a consistência, e, a passos largos, a diluir-se no tempo.
Se, contudo, fizermos um exercício de reflexão, tendo em conta o que se passou no país, nos dez dias de campanha eleitoral – ainda que a mesma tivesse decorrido, de um modo geral, sob o signo do civismo –, chegamos à conclusão de que o assunto em causa é merecedor de um olhar mais atento.
Pela ligação afectiva que mantenho com o mundo rural, parece-me perfeitamente descomedido que, em muitas aldeias que conheço, as pessoas virem as costas umas às outras, se agridam das mais diversas maneiras, onde a carta anónima é a arma mais demolidora e, porventura, a mais cobarde. Sendo que o bizarro da situação chega ao ponto de haver famílias inteiras desavençadas, pelo mesmo motivo.
No meu caso particular, ainda que remotamente, poderia admitir a hipótese de pelejar com quem – excluindo conhecidos, amigos e familiares – disputasse comigo um lugar de gestor público.