Qua, 16/08/2006 - 10:28
Porque quando estamos esbodegados pela modorra de Agosto e sentimos que muito pouco nos pode fazer mexer, atingimos, sem quase nos apercebermos, um estado de perfeita consciência. Na percepção de que a vida é um poliedro formado por muitos lados sujeitos a diferentes ângulos de luz e sombra. Onde qualquer impressão, seja boa ou bera, basta para bulir com a nossa branda beatitude …
O Lado B …de BOM:
Sendim, “capital das arribas”, botou-se, bem-aventuradamente, a mais uma brilhante edição (a sétima) do Festival Intercéltico, entre os dias 3 e 6 de Agosto. Eu, que por lá andei no dia 5, comecei por ir até ao rio, a um inesperado ancoradouro esplanchado entre as escarpas por onde o Douro se ancora. E se há silêncios que se tornam barulhentos, ali se achavam os sons com que a natureza bravia silenciava quem se botasse a bote por aquele rio acima. Como num corredor de que não se adivinha a saída, porque cada momento percorrido vale por um viagem.
E já de volta à Vila, na casa do sendinense Ilídio Rodrigues, pude provar o salpicão local (feito com água) e o pão caseiro, que se combinam como um abraço comido com desembaraço. Que quase me faria perder o apetite para o jantar, mas não para a surpresa em que ele se viria a tornar. É que bem no centro de Sendim, na rua La Frauga, onde todas as casas parecem estar dispostas a contar histórias, há uma, amarela de sua cor, que tem um rol de “cuontas” por narrar. La Tenerie é, afinal, um hotel rural e restaurante que vive num edifício com mais de seis séculos e que deve o seu nome ao facto de ali ter funcionado, em tempos muito idos, uma fábrica de curtumes. Hoje, propriedade de Marília Almendra e Carlos Ferreira, La Tenerie abre as suas portas a quem tiver a boa estrela de ali ir bater, respondendo-se sempre em língua mirandesa: “Entre quien seia”. E, como disse o grande Torga, “a gente entra, e já está no Reino Maravilhoso”. Lá dentro, segue-se a alegria à surpresa de nos acharmos na frescura de um espaço feito de amarelos e verdes, onde as luzes do conforto se colam ás sugestões de uma natureza que se repete em cada pormenor. Desde as salas até aos quartos – onde cada porta nomeia uma planta revelada – passando (e ficando) pelo restaurante, junto à porta virada para a piscina. Enquanto o paladar se revira na espessura da Posta disposta a satisfazer o sentido que ali nos levou. E, de espírito beatificado, de lá saímos percebendo, afinal, por que razões “an baixo dun cielo azul, la Tierra de Miranda se pinta de tons amarielhos i arrama até longe las sues óndias”.
De volta ao espaço do bulício – e já perto do recinto do Festival, onde encontrei muitos brigantinos – fiquei a saber que tinha perdido o “workshop de la Lhéngua”, no qual Amadeu Ferreira ensinara, nesse mesmo dia, a falar Mirandês (mas logo resolvi que para o ano lá pararia). Por ora, parei na Casa da Cultura de Sendim, onde a Exposição sobre José Afonso, “Amigo maior que o pensamento”, se abria, como numa partilha generosa, aos sons das celebrações intercélticas que já se faziam ouvir.
Nessa noite, os Mielotxin, de Navarra, – que devem o seu nome a um histórico bandido da região – abriram os tons tradicionais, de sabor popular, em fusão com outros instrumentos, intercalando ritmos inesperados. Da Galiza vieram, depois, os Berroguetto – formação experiente, com músicos consolidados na folk galega – com um som de imprevisível compromisso “entre a música tradicional e a experimentação por novos caminhos estéticos”, a cavalo de um contacto caloroso e permanente com o público. Desejado – e ansiado pela demora – chegou Hevia, das Astúrias, herdeiro da tradição oral mais pura, que diz: “Continuo a fazer, no meu dia-a-dia, a música como sempre fiz. Muitas vezes faço-a a partir de uma melodia tradicional e noutras ocasiões a partir das melodias que me vão surgindo (…) e através destas duas vias procuro chegar a coisas muito semelhantes.”
Em Fermoselle, onde teve início, ou em Sendim, onde se desenrolou, a “folk merece um festival assim!” E nós também.
O Lado B … de BERA:
Lembrei-me, há dias, das minhas pouco saudosas aulas de Física, do 9º ano. Quando eu, entre bocejos e pestanadas, lá conseguia ouvir, do fundo de uma névoa, a voz esforçada da professora que fazia o que podia para explicar que o calor dilata os corpos.
E porque estamos em Agosto, as demonstrações dessa lei universal arramam-se. A época a que os práticos ingleses designaram por “silly season” – estação tonta – tem a particularidade de entontecer quase todos quantos por ela fatalmente passam. Tome-se, então, como exemplo (leitor, não tome isto à letra) o Sr. Ministro da Saúde. E veja-se como as quenturas estivais conseguiram o notável feito de redobrar uma capacidade que o governante tem, já de si, bastante desenvolvida e que consiste em falar mais do que precisa e menos do que deve. Como ficou evidente na sua passagem por Bragança, em Dezembro último, quando considerou, em tom paternalista, que o Hospital de Bragança “está muito melhor do que esperava”, enquanto debitava delirantes considerações sobre as parturientes do distrito: “As mulheres, quer a gente queira, quer não, já estão a fazer a sua escolha; e vão aos sítios onde estão tranquilas”. Ora, pelas palavras do Sr. Ministro, não se percebe bem se “a gente” a que ele se refere é a sua pessoa ou se, pelo contrário, se trata da massa anónima e pouco consistente da população nordestina. Mas o que quer o Sr. Ministro, afinal?
Na lúgubre entrevista de domingo, que deu em 6 de Agosto ao Jornal de Notícias, nas duas linhas em que se referiu à Maternidade de Mirandela, fê-lo abordando, apenas, a “quantidade” da equipa (“Mirandela é a que tem menos equipa”), sem outras considerações adjacentes ou subsequentes. O que, obviamente, lança uma estranha e opaca luz sobre a questão das parturientes transmontanas. Porque, e ao contrário daquilo que o Sr. Ministro afirmava em Dezembro, as mulheres nordestinas têm uma amplitude de escolha muito reduzida, no momento de darem à luz. E as pouquíssimas alternativas que lhes são apresentadas (de que doravante se subtrairá uma) ainda se afunilam de forma dramática para aquelas que têm de se deslocar dos pontos marginais do distrito. Por isso, quando o Sr. Ministro fala em “equipa”, será prudente considerar as “reservas” disponíveis, no que diz respeito a ambulâncias e bombeiros, repensando a formação destes e toda a logística inerente ao transporte das grávidas.
Mas nada disto é realmente importante, afinal. Se a jornalista do JN não tivesse colocado uma questão tão impertinente como deslocada, o Sr. Ministro não se teria incomodado a dar uma informação irrelevante no contexto do SNS, como é o encerramento de uma maternidade de província. Coitado do Sr. Ministro! Ele não tem culpa de ter sido remetido a meia página da secção “Etcetera de Verão”, ensanduichado entre o novo amor de um actor na berra, as férias do Presidente e a Festa de Verão nas Caldas. Nem tem culpa que a jornalista em causa não percebesse que aquele não era o lugar nem o momento para fazer perguntas sérias (pelo amor de Deus, estamos em Agosto!). E, por outro lado, o Sr. Ministro também não tem culpa de que, três dias mais tarde, em entrevista ao jornal Público, as jornalistas que o questionaram não lhe tenham feito qualquer pergunta sobre o tal iminente encerramento. O que, por um lado, comprova a irrelevância do assunto. E, por outro, demonstra que o Sr. Ministro não gosta de dizer mais do que sabe; porque ou sabe mais do que diz e não o quer dizer, ou sabe pouco mais do que aqueles a quem diz o pouco que sabe; o que equivale a saber menos do que eles.
Em todo o caso, o Sr. Ministro também não tem culpa de ser pouco fotogénico.