Ter, 13/06/2006 - 16:35
Revejo-o na rua Almirante Reis a zerinbar mansamente o Sr. Alberto Rodrigues por o Benfica ter perdido na Galiza, para logo a seguir atravessar a rua e apostar cem escudos com o Sr. Roque da Silva Moura, defendendo o seu Sporting contra o Porto. Entroncado, nas mãos, os dedos exibiam cachuchos, ufano das suas insígnias de vendedor autorizado de lotaria nacional, nunca por nunca se deixou confundir com xêperos clandestinos que por alturas do Natal também surgiam na cidade a propagandear a taluda. Sabia imenso sobre a cidade e muitos dos seus figurões, figurantes e figuras mais qualificadas. Esse conhecimento se fosse recolhido, tratado, estruturado e confrontado com outras fontes permitia-nos estabelecer o ritmo e pulsar da urbe desde os anos trinta até à sua retirada. Talvez pudéssemos perceber os ajustes e desajustes raivosos dos sargentos republicanos que feitos alferes e tenentes ocuparam postos de relativa importância na máquina administrativa, militar e policial do burgo bragançano. Entendermos a mesquinhez, a inveja e a pesporrência de capitães com vinte anos de três galões nos ombros, promovidos a soluços aos postos imediatos, usufrutuários de cargos de confiança do salazarismo, aptos a rançosamente lançarem vitupérios sobre os adversários, a estacionarem a carreira entre o degrau de major e coronel, risonhos nas cerimónias políticas e religiosas quando um ou outro mais afoito, tropeçava no degrau de ascenso ao generalato. Sendo uma terra de militares, burocratas, comerciantes, industriais de furgalhos, um vendedor de sonhos, quantas vezes a prestações, capaz de ouvir acres exclamações porque o sonho saiu branco, chistoso quando propiciava a terminação, exultante ao conferir a lista antes de anunciar prémio mais vultuoso, o Senhor em causa – popularmente chamado o Toilas – distinguia muito bem quais os que mereciam atenção e respeito por serem Senhores e, os que julgando-se nessa categoria, dele recebiam sorrisos de comiseração, vagares de ombros e retórica em consonância, por não o serem. A Bragança desses anos de chumbo, centrada nas lantejoulas a encobrirem desmandos dos dignitários do poder mais os seus criados mal pagos e, por isso mesmo, a aceitarem o trabalho de intermediários do favorzinho e do empenho com o consequente transporte das perdizes, do cabritinho pascal, do leitãozinho, quando não das trutas já escabechadas, bem merecia um trabalho de pesquisa onde os testemunhos presenciais se revestem da maior importância. Um famoso senegalês afirmava: “Em África, quando morre um velho, desaparece uma biblioteca”. Ouvir e registar as palavras deste arguto observador e afinado ouvinte das murmurações e invejas dos comerciantes em constante desafio pelo poder centrado no Grémio do Comércio, dos cavaleiros ufanos em relatarem as conquistas quantas vezes desmentidas pela mulher com quem compartilhavam o tálamo, dos jogadores não do trinta e um nos cafés, mas da batota em conhecidos ou inverosímeis locais, dos despiques entre doutores a sério – médicos e advogados – e doutores mal pagos a esgodarem as calças e casacos em secretárias de amanuenses ou à volta das carteiras dos meninos do Liceu, do Colégio e da Escola, seria um trunfo decisivo para podermos domar monstros do disse-me/disse-me e escrever-se obra de tomo. Talvez ele não esteja interessado em tal. No entanto, a Praça da Sé, os defuntos Central e Moderno, o Poças, o Flórida, o mercado e as tabernas que desapareceram foram espaços privilegiados de actuação deste homem especialista em arrancar gargalhadas ao mais sisudo e vender uma cautela ao maior avarento. Saúde e muitos anos de bom viver lhe desejo.