Qui, 29/06/2006 - 10:35
Deixando de lado as erudições relativas do desporto-rei, nos idos de 1996, não gastava tempo a estudá-lo, preferia analisar as concludentes vitórias do Benfica recorrendo à “Bíblia” trissemanal, entenda-se o jornal “A Bola”, o campeonato do Mundo apanhou Bragança a sofrer os efeitos de uma grande onde calor, a justificar banhos avinhados ou cervejados no tanque de São Vicente, pela madrugada fora por ousados nadadores especialistas em cearem em Vinhas e almoçarem em Fontes. A cidade nesse tempo vivia espartilhada, ocupando cada actor o seu devido papel no tablado público, sendo os consórcios permitidos dentro de regras definidas pelo salafrário de Santa Comba e levadas ao ajuste por todos os seus apaniguados, lambe-botas, aporrinhadores das mentes sãs e alegres, desconsciências pusilânimes, troca-tintas vindos da I República, beatas gordas e magras, mais a cáfila dos legionários, bufos e comandita correlativa. Os médicos medicavam mais pires ou menos flores, os advogados advogavam mais efectivamente ou menos fariamente, os padres dividiam-se entre a Sé e Santa Maria, os arquitectos vendiam aulas, os engenheiros engenhocavam nas repartições públicas e um ousava viver fora do funcionalismo, os professores panejavam nos cafés o mal viver pela miséria dos ordenados, os polícias cacetetavam nos jogos de futebol, os guardas-republicanos exibiam as canhotas nas festas, ainda havia criadas de servir, sopeiras de carnes rijas e governantas de seios bojudos, nós, um grupo dado a travessuras cândidas e discretas jogávamos a lerpa até às quinhentas, com um intervalo pelo meio, a fim de comermos pregos suculentos e bebermos finos na cave do Flórida, enquanto no primeiro piso o saudoso Álvaro guitarrava o Glorioso e o Sr. Queiroz ripostava em consonância em defesa dos Andrades, entenda-se os portistas. Era assim, e não era mau para aquele grupo especialista em jogar até um ficar Cristo. Daí também se apelidar a honorable lerpa, por: “jogo do Cristo”. E aqui abro um parêntesis, a fim de lembrar um jogador espanhol chamado Cristo, o qual não pode triunfar, porque concedendo razão a Juan Garcia Candau, “era impossível inclui-lo nos títulos das crónicas. Nada podia encabeçar histórias assim:” Dois golos de Cristo ressuscitam o Sabadell, “Cristo caiu na área”, “Cristo expulso em La Condomina”. Este Cristo acabou rapidamente como jogador, mas a forte e denodada equipa da lerpa nunca se vergou e deu boa réplica aos homens da formidável selecção onde brilhava a “Pantera Negra”. Todos cumpriam os seus deveres de fintar as freiras e dirigentes dos lares femininos, todos namoravam a mãos ambas, ultrapassavam a linha fronteiriça quando podiam, agradeciam o amparo e abrigo de São Bartolomeu e, findas as tarefas obrigatórias entregavam-se ao jogo sem canseiras, sem remorsos pelas noites infindas e aflitos, quando não temerosos do futuro devido à azarina como convictamente afirmava um jogador conhecido debaixo do pseudónimo de Cinzas. No dia da importante vitória sobre a Coreia do Sul, um domingo, o autor desta crónica subiu o escadório do Santo levando o credo na boca porque os portugueses perdiam a bom perder. Entre juras de amor eterno, amplexos vigorosos em justo receio dada a fauna existente de cheirões, peles de ano e grandes lagóias, não deixei de pensar na derrota nacional e na desforra que desejava dado o desaire da noite anterior. Descansado desci os degraus, na estrada um automóvel soltava palavras radiofónicas, altissonantes, a proclamarem a vitória dos pupilos de Luz Afonso. Coloquei a rapariga na Casa do Arco, jantei divinalmente pela mão da Menina Amélia e, logo a seguir abri o espaço lúdico a fim de cumprirmos as nossas obrigações lerpárias. Assim foi durante todo o campeonato, mesmo no dia da derrota, o normativo em vigor o determinava dada nossa condição de aficionados ao jogo das três cartas. Porque alguns dos intervenientes podem ficar aborrecidos, ou porque as legítimas os obrigariam a pagar por pecados antigos, ou ainda porque é possível terem-se transformado em gente sisuda, grave e susceptível não revelo os nomes dos meus parceiros de jogo.
P.S.: O retrato da cidade está muito, muito incompleto. O espaço assim o determina.