Ter, 04/07/2006 - 16:04
O Eusébio, dele se trata, virava estrela apesar das ruminações de africanistas e broncos encolhidos no seu próprio rancor. Porque vem a talhe de foice, vou cometer uma indiscrição acerca do melhor jogador de sempre de matriz nacional, pese o seu nascimento em Moçambique. Desde há muitos anos que, regularmente, almoço nessa Catedral de bons comeres, conhecida por Adega da Tia Matilde. O Eusébio também, mais a mais o Sr. Emílio é um autêntico pai para o extraordinário jogador. Pois bem, aqui há tempos, decidi almoçar ao balcão, cujos restantes lugares foram sendo preenchidos pelo José Augusto, Simões, Alexandre Batista, Manuel Fernandes, Peres e, naturalmente, o Eusébio. A conversa foi ganhando fulgor tendo como pano de fundo o futebol, o homem da goleada ao Real de Madrid, abriu o livro das memórias, contando episódios inéditos e, o Mundial de 66, não ficou de fora, desde as lágrimas pela derrota, mas também sobre a forma como conseguiu iludir o Yashin, reconhecido e aplaudido por – Aranha Negra. No fim do exultante almoço, Zé Augusto provocou o espanto ao perguntar: na bolsa de valores futebolísticos actual, quanto valeriam aqueles formidáveis seis jogadores. O Vasco suspendeu o eficaz acto de cortar finas fatias e presunto Bellota e, o Manuel Fernandes cortou o silêncio, ao dizer um número prodigioso. Abandonei o restaurante pensando nos prodígios da vida, pois em 66, andei a vitoriar o Eusébio, nunca me passando pela cabeça poder vir conhecê-lo, mais a mais, porque vivia numa bronca cidade repleta de silêncios reverentes, ridículos ornamentos sociais e, eu não passar de um jovem ainda mais ignaro, do que sou hoje. Ao tempo, o futebol era a locomotiva dos três efes em permanência na sociedade portuguesa, os outros – fado e Fátima – potenciavam os restantes elementos constitutivos de um regime salafrário, sacarrão e solerte. Ficámos alegres pela vitória, no intervalo do nosso jogo de eleição, além dos finos e pregos, jogámos à moedinha doses do então afamado Dimple e, nesse dia, deixámos gorjeta insignificante aos pacientes empregados. O Flórida fervilhava. As meias-finais ditaram uma triste sorte, os lagartos reclamaram por o Lourenço não ter jogado, a Praça da Sé não mudou de sítio e a Sra. Maria Guedes continuou a observar aquele espaço como se estivesse no teatro, enquanto disfarçadamente me passava envolto em papel pardo mais um livro do Vilhena e, comentava as últimas novidades sem brejeirice ou maleita de maior. Uma excelente e perspicaz decifradora de gestos e palavra a Senhora. E quanto mais nos esforçávamos por encontrar um razão da derrota, a gritaria dos argumentos a favor ou contra só cessava no momento de as quarenta folhas do livro da sorte ou azar, serem distribuídas em tríade a fazer soltar suspiros controlados, ou não fosse o adversário perceber a angústia de termos três ases, sem ser o de trunfo e, por isso, os ases serem destruídos por miseráveis cartas baixas, só fortes no faroleiro jogo do chincalhão. O jogo a seguir concedeu-nos a alegria de ficarmos em terceiro lugar. Coisa miraculosa e imaculada para um Portugal habituado a um longo passado de derrotas e humilhações. Também na rubicunda cidade bragançana se exultou e até os salazaristas e serventuários da União Nacional, vieram à rua exibir dentaduras desajustadas, num arremedo de sorriso democrático. Nós tivemos mais azar, devido ao calor as janelas do espaço lúdico, estavam abertas, ouvindo-se na rua as exclamações e impropérios dos possuídos pela desfortuna ou azar. Um polícia sem mandato, naquele tempo seria considerado uma bizarria ou asnice, entrou no prédio bateu à porta, identificou-se e, um agarrado ao susto, atirou-se pela janela sem mossa de maior, fugindo lépido como uma lebre perseguida pelos cães. O Mundial de 66 tinha terminado. O nosso campeonato prosseguia.
Armando Fernandes
PS. Recebi um telefonema de contentamento pela crónica, mas pedia comentários de modo a conhecer a identidade das vedetas. Ainda não! Ainda não!