O homem tartaruga

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Ter, 14/11/2006 - 14:56


Noutra encarnação, Viriato Lico, 44 anos, transmontano de Bragança, poderia ter sido um egípcio construtor de pirâmides. Nesta, é um homem extraordinário que há 20 anos está a construir uma casa.

Sem a ajuda de ninguém, nem de serventes, nem de engenheiros ou arquitectos. Usando apenas as suas próprias mãos e a cabeça.
Pelos seus cálculos, vai precisar de mais uns dez anos para acabar a obra de uma vida, uma enorme casa de pedra de dois andares, com uma torre, implantada num terreno de 2.800 metros quadrados, junto ao rio Fervença, em Oleirinhos, freguesia de Meixedo, no coração do Parque Natural de Montesinho.
À primeira vista, a perspectiva de ainda faltarem dez anos soa a conservadora. A casa apalaçada tem um ar de acabado, mas Lico quer acrescentar dois quartos, com casa de banho privativa, aos quatro já existentes, fazer uma piscina, completar o muro nas traseiras e, não nos podemos esquecer de que se trata da obra de um homem só e com poucos recursos.
Como não tem os pais ricos, nem lhe saiu a lotaria, nem recorreu ao BES para lhe emprestar dinheiro, Lico financia a construção da casa com o dinheiro que ganha a pintar reclames publicitários, em automóveis, vidros ou paredes. O seu jeito de mãos não se esgota na capacidade de aparelhar pedras, adaptando-as à medida pretendida. Também se estende ao delicado trabalho de precisão de pintar letras e logos em letreiros.
Desde pequeno que gosta de aproveitar as pedras que a natureza lhe põe ao alcance da mão para as transformar em algo de útil. Era pequeno quando, no percurso diário de três quilómetros entre a sua casa e a escola primária, foi coleccionando pedras que encontrava no caminho. Levava-as para a casa, amontoando-as até ter tempo para as trabalhar. Aos dez anos usou-as para enriquecer a casa paterna com um belo pátio.
Não quis o destino que fosse longe nos estudos, interrompidos no 9.º ano. O jeito de mãos era extensivo aos pés. Dito de outra forma, Lico nasceu com dom para a bola e desde cedo começou a ganhar dinheiro como futebolista profissional. Vestiu a camisola azul e amarela do Bragança e percorreu quase todos os clubes da região, Vinhais e Mirandês incluídos, numa carreira de médio ala que se esgotou nos pelados da III Divisão e Distritais, mas teria sido brilhante se não fosse interrompida pela tropa e martirizada por uma série de lesões que o impedem de dobrar o joelho direito.

O essencial da sua vida nos últimos 20 anos confunde-se com a história da Casa da Patada da Moura, em pleno Parque Natural de Montesinho

Ele não gosta de se gabar, mas reconhece que podia ter sido um craque na I Divisão, não fossem as malditas lesões e o “handicap” de ter nascido bem para lá do Marão, numa cidade fora de mão, longe da rota dos olheiros dos grandes clubes de Lisboa e do Porto.
Lico continua a jogar futebol todas as semanas. Na variante de onze, alinha nos veteranos do Bragança. E, duas vezes por semana, joga numa equipa de futebol de salão que defronta uma selecção de políticos transmontanos.
Tinha 24 anos quando resolveu substituir a paixão pelo futebol pela paixão pela casa que já lhe consumiu 20 anos de tempos livres e poupança. “Ando sempre teso. Aplico aqui tudo o que ganho. Não dou muito valor ao dinheiro. Quando junto algum, compro logo um saco de cimento”, diz.
O sonho começou na tropa, na Infantaria, em Abrantes, onde, já soldado pronto, construiu uma casa em fósforos que ainda guarda e é uma primeira aproximação à casa de pedra, madeira e cimento que está a concluir no parque de Montesinho.
Regressado da tropa, continuou a jogar à bola e arranjou um emprego como cobrador da EDP, por conta própria. Ganhava à percentagem do que cobrava. “Nunca gostei de ter patrões”, explica. Em Julho de 2006, ainda não tinha adquirido o terreno, quando começou a fazer, em regime de pré-fabricação, os arcos redondos em pedra que embelezam a entrada da casa, que já baptizou de Casa da Patada da Moura, assim chamada a partir da lenda sobre uma moura que dormia nas imediações, A opinião dos habitantes locais dividia-se. Uns diziam que ela era santa. Outros garantiam que era uma bruxa. Ela terá sepultado a questão, comunicando que era santa, ao deixar a marca do pé num rochedo. Como é óbvio a pedra já não existe. Uma lenda mais recente diz que passa agora uma estrada no lugar onde ela estava.
Lico sabia o que queria. Era um terreno junto ao rio Fervença. Procurou até o achar. Custou-lhe 1.700 contos. Mais tarde comprou por mais 1.500 contos um terreno contíguo, que lhe permite desafogar a área à volta de casa e acrescentar-lhe alguns luxos: garagem com capacidade para quatro carros, piscina, “barbecue” e uma magnífica adega, parcialmente enterrada na terra e com paredes de pedra com 1,2 metros de largura. “Sente-se frio quando se entra aqui no Verão”, garante. E estamos em Trás-os-Montes, terra onde o ano se divide em nove meses de Inverno e três de Inferno…

Este homem vai gastar 30 anos úteis da sua vida a pôr de pé uma casa que não faz tenções de habitar. O plano de Lico é obter dela rendimento, como casa de turismo rural.

O essencial da sua vida nos últimos 20 anos confunde-se com a história da Casa da Patada da Moura. No entretanto, casou-se e descasou-se num episódio de que não resultaram filhos - ele não precisa, tem a casa; um dia um amigo testou-o perguntando-lhe quanto é que ele queria pela casa e ele respondeu, ofendido: “E o senhor quanto quer pelo seu filho?!” - e que é para aqui chamado porque lhe atrasou os trabalhos.
A ex-mulher queria ficar com metade da casa, mas o tribunal foi compreensivo com Lico, que, como os vizinhos testemunharam, tinha feito tudo sem a ajuda de ninguém, pelo que decidiu que os direitos da mulher se resolviam com o pagamento de mil contos, em dinheiro.
Os materiais de construção são recolhidos na natureza. A casa não engana. Logo à primeira vista reconhece-se a predominância do xisto de Montesinho. “Durante os primeiros dez anos não precisei de comprar areia. Usei a do rio. E aproveito a madeira das demolições, que os empreiteiros me oferecem”, conta Lico, que amassa cimento, areia e água com as mãos, protegidas por luvas.
A generosidade local também contribui para esta história extraordinária. Uma fábrica de granito das redondezas dá-lhe os restos. E três diferentes presidentes da Câmara de Bragança fizeram vista grossa àquela construção que crescia ilegalmente no Parque. Finalmente, nesta Primavera, a Casa da Patada da Moura foi legalizada e Lico pode mostrá-la com orgulho ao País.
Excluindo janelas e portas, ele fez tudo sozinho. O cão de pêlo preto, adequadamente chamado Black, já velho e cego, é a única ajuda com que conta, mas que não lhe valeu de muito quando se tratou de erguer uma pedra de 300 quilos a uma altura superior à dele - ou de movimentar as pedras usadas na lage que pesavam uma tonelada.
Uma velha Ford Transit azul, com a palavra “Publicidade” pintada de lado, é o meio de transporte polivalente, onde cabem ele próprio, o Black, as pedras que ele vai recolhendo e os materiais para a sua actividade de escritor de reclames.
No princípio, as pessoas descriam. Não acreditavam na sua enorme força de vontade. Um antigo governador civil de Bragança, que tem um rebanho de doze ovelhas (das quais três negras) a pastar nas redondezas, aconselhou-o a meter uma retro-escavadora, que a coisa andava muito mais depressa. Lico agradeceu o conselho mas fez tudo à maneira dele. À mão. Pacientemente.
O mais surpreendente em toda esta história é o final. Este homem vai gastar 30 anos úteis da sua vida a pôr de pé uma casa que não faz tenções de habitar. O plano de Lico é obter dela rendimento, como casa de turismo rural.
Como diria o Fernando Pessa: E esta, hein?!

Jorge Fiel - Expresso