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O Grito

Ter, 26/09/2006 - 16:37


Há muitos e muitos anos, deixei Bragança levando comigo um saco de gritos. O mundo era mais leve em termos populacionais, mais pesava a cidade sufocada pelos gritos a ecoarem nos ouvidos daqueles que eram capazes de ouvir os gemidos guturais da mulher dona de uma cabeça marcada por chaga asquerosa motivadora de esmola cega e colocada por dedos hipócritas de modo a não rasparem a mão da desgraçada.

A cidade examinava-se a si mesma misturando os gritos da perfídia dos delatores convivas de vinho ordinário e iscas frias nas locandas, com os roucos vozeirões dos vendedores de peixe no mercado e as estridências histéricas de beatas mal atendidas na cama, devoradoras de ofícios religiosos dando a possibilidade aos adolescentes de lhe perscrutarem as varizes enquanto acolitavam o sacerdote no mês de Maria. Nas noites quentes de Estio os gritos abafados dos desgraçados estilo Delfinha misturavam-se aos cheiros fétidos de ruas e corpos mal lavados, sendo inalados por almas simples, mentes sãs e corrompidas consciências. Nas manhãs frias de Inverno homens exalando sons cavernosos envoltos em bagaço preparavam as mulas no largo da Estação, enquanto não recolhiam as encomendas vindas em vagões a emanarem odores a ferro fundido, bacalhau, adubos e lixívia. Mais a meio da manhã meninos e gandulos espirravam clamores em volta de pacotes que deslizavam em sinuosa patinagem pela Avenida João da Cruz, ajudando à engorda da fortuna de comerciantes obesos de prosápia democrática ou exposta piedade cristã. O alarido sustido irrompia nas casas de qualidade porque esposos excelentes pespegavam sonoras bofetadas às consortes (?), de modo a poderem exibir nódoas passajadas a pó-de-arroz e rouge nas salas de visita das amigas, maridos ditos irrepreeensíveis faziam as criadas soltarem gritinhos quando as beliscavam no fundo das costas, nos bicos dos seios ou nas orelhas, outras mulheres soltavam gritos lancinantes porque os seus homens lhe propiciavam afagos de correia, botas e punhos fechados, acompanhados de insultos urrados para os filhos perceberem quem mandava em tudo. Os gritos de contentamento e sensações de felicidade chegaram tardiamente pois para começar, a infância e a adolescência não foram tão felizes como isso, pouco tendo de agrado de modo a serem referência nostálgica. Nos alvores dos anos oitenta, fiz um curto estágio em Helsínquia. Na primeira oportunidade dei um salto a Oslo e contemplei demoradamente “O Grito” obra singular de Munch. Voltei a revê-lo, a estudá-lo. Aquela boca disforme a lançar sucessivos gritos recebendo em troca os ecos, provocou-me desconfortável atracção. Noutra viagem procurei resistir-lhe, deambulei pelo formidável parque envolvente, o qual serviu de modelo a Isaltino de Morais para o parque dos poetas em Oeiras, mas a atracção levou a melhor, porque o quadro devolvia-me à Bragança dos anos cinquenta, aos gritos ensacados. A fantástica tela foi roubada em 2004. Passei em Oslo há poucas semanas, a memória trouxe-me dele acerada recordação. Nem ao parque fui, o pesar continuava. Os jornais recentes anunciaram a intacta recuperação do “O Grito” e da “Madonna”. A história ainda não está contada, mas teve um final feliz. Mal possa, voltarei a contemplá-lo porque não esqueço as palavras de Munch:” Não pinto o que vejo, sim aquilo que vi.” Os seus quadros representam “as pessoas vivas que respiram e sentem, padecem e amam.” Daí a atracção!