O Grande Fosso

PUB.

Ter, 24/10/2006 - 10:52


Ouvi, há dias, na rádio regional, o anúncio de que mais um livro da saga de Astérix iria ser traduzido para Mirandês. E fiquei entusiasmada (é que foi através de “Asterix L Goulés” que eu descobri a segunda língua de Portugal).

Mas logo a seguir senti-me desiludida, porque o coordenador da tradução, Amadeu Ferreira, fazia saber que o título a traduzir seria “O Grande Fosso”, que me parece um dos piores livros de toda a colecção: sem graça, sem brilho e sem o toque subtilmente genial do grande Goscinny. Porque, justamente, “O Grande Fosso” é o primeiro título a ser integralmente criado por Albert Uderzo que, até à morte de Goscinny, era “apenas” o admirável desenhador das personagens mais populares da banda desenhada francesa. Já sem o companheiro, Uderzo lançou-se à escrita do texto, cheio de boas intenções, mas vazio de razões: na ausência de estilo próprio e na tentativa falhada de recolar algumas situações ou caracteres que pudessem soar a “goscinnyês”. Por isso, de repente, fiquei às escuras, sem perceber a real razão da escolha de “O Grande Fosso”. Tanto foi o meu espanto que corri a relê-lo. E eis que se me fez luz.
Um dos aspectos esclarecedores dos debates sobre o estado da nação é a forma invariável como o chefe do governo é fervorosamente acolitado por um punhado de senhores que deputam pela nossa Nação e debitam pelo seu (deles) dono. Seja o assunto em causa o elogio do Plano Tecnológico, a glorificação da fúria reformista na educação, ou o louvor do milagre com que a reforma da Administração Pública esborrachará o monstro da despesa pública. E esse mesmo grupo de deputados está inevitavelmente ligado a um dos partidos com esse estranho e incurável síndroma conhecido por “vocação do poder”. Que é um vírus que, tanto quanto se sabe, só se adquire depois de se ter tido contacto com esse tal poder. O que cria, inexoravelmente, uma espécie de ciclo que vicia os incontornáveis deputados, na sua incondicional euforia de claque perante os desempenhos com que o chefe do governo atordoa de brilhantismo e de razões os seus fiéis seguidores.
Outro ponto esclarecedor dos debates sobre o estado da nação é que, para além das mediáticas caras de cartaz, poucos são os deputados que deputam – e muito menos debatem – a nação ou o seu estado. A menos que o conceito de nação se confunda com o volume do pacote das medidas governamentais. Assim se percebe que não haja nação para lá do espaço, centralizador e abstracto, de onde as subidas instâncias do executivo do governo emanam os seus altos desígnios sobre a tal nação que eles dizem representar. O estado do país real – aquele que sofre de falta de acessibilidades; de economia sustentada por actividades mal organizadas; de fraca iniciativa empresarial; de perda de serviços; e de desertificação galopante – esse, é inevitavelmente lançado às suas próprias urtigas.
Isso se viu no último Debate sobre o Estado da Nação, ocorrido em 12 de Julho passado, onde o interior do país foi referido, apenas, pelo deputado Jerónimo de Sousa que lembrou ao chefe do governo que “Também não falou das razões que levam ao abandono do interior – aliás o Sr. Primeiro-Ministro nunca mais falou do serrano que tinha nascido numa aldeia… – tendo em conta as desigualdades regionais que existem hoje num País cada vez mais inclinado para o oceano.” Como se, para o governo, o grande fosso entre o litoral e a longa faixa leste de Portugal constituísse uma fatalidade intransponível ou uma minudência tanto mais insignificante quanto mais repetida. E só a deputada Ana Drago – denunciando a ausência de estudos que estariam na base da reorganização dos serviços centrais do Estado – referiu que o governo “avançou com o fecho das urgências em centros de saúde, com o fecho de maternidades, com o fecho de escolas (…) e os portugueses sabem qual é o efeito destas medidas”.
O Eng.º José Carlos Correia Mota de Andrade, deputado do PS pelo distrito de Bragança, também interveio. Para lançar um fervoroso”Muito bem!” a José Sócrates que, auto-elogiosamente, afirmava que “esta agenda de reformas é dominada pelo sentido da justiça e da equidade”. Donde se percebe que a atitude de permanente concordância de Mota Andrade perante as medidas com que o governo tem vindo a isolar o Nordeste Transmontano mostra a sua convicção de que o distrito de Bragança não faz parte da nação. Porque – está visto! – a bem dessa nação pela qual ele deputa, é “justo e equitativo” que a região de Trás-os-Montes seja permanentemente remetida para as promessas de redenção de um mapa glorioso, na histeria eleitoralista com que os senhores da nação enganam os papalvos da “província”. Enquanto a nação – a de certo! – continua a pôr e a dispor dos benefícios económicos com os quais vai engrossando de infra-estruturas, serviços e população.
Faz sentido, portanto, a escolha do livro “O Grande Fosso” para ser traduzido na segunda língua de Portugal.