O Duplo Paradoxo das Festarolas

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Ter, 12/09/2006 - 16:44


O termo despesismo, frequentemente verbalizado no nosso quotidiano, remete-nos para a ideia – alimentada pelas relações sociais e pela prática colectiva – de que apenas é associado à descrição de situações em que o dinheiro dos contribuintes é danosamente gerido pelos responsáveis da Administração Pública.

Por conseguinte, o povo, ancorado ao pressuposto romântico de que “os exemplos vêm de cima”, e que, fruto da posição incómoda que ocupa na pirâmide social, sente verdadeiramente na pele as consequências do “tempo das vacas magras”, ele que, como tribunal anónimo que é, julga, com todo o direito que lhe assiste, as acções dos governantes, criticando o T G V, a OTA, as benesses e as mordomias dos titulares de cargos públicos, também ele ousa falsear a sua linha de coerência, a sua dignidade, ao não resistir `a tentação de certas superfluidades.
De facto, esta tendência natural do vulgo português para gastar aquilo que aparentemente não tem, para dar o passo maior do que a perna, reflecte-se com grande evidência nas grandes manifestações colectivas, através das designadas festas cívicas de Verão. É aqui, pois, que ele entra em dupla contradição.
Estas festas anuais, que se realizam de norte a sul do país, têm um carácter profundamente cristão, ainda que importadas do paganismo. As festas, características desta época do ano, simbolizam não mais do que um acto de humildade e gratidão humana; ou seja, elas são uma forma do povo homenagear e venerar os santos padroeiros, por se lhes atribuir a responsabilidade pelas boas colheitas, pelos cereais, pelo pão – alimento que simboliza a Vida.
Contrariamente aos mais elementares Fundamentos da Doutrina Cristã, os quais sugerem ao homem uma vida orientada para o desapego das coisas materiais, hoje as festas das nossas aldeias decorrem sob o signo e o espírito da faustuosidade e do exagero, quais montras de vaidade e exibicionismo.
É inconcebível que, em tempo de crise - este é o segundo paradoxo -, certas aldeias com pouco mais de vinte moradores, e onde sobrevivem idosos com míseras reformas que se “evaporam” nas farmácias, se dêem ao luxo de instituir não um , mas dois dias de festa, e esbanjar 1500 contos na contratação dum repetitivo Quim Barreiros, duma Mónica Sintra, dumas Tayty`s, dum Tony Carreira e parelhos, os quais, de forma desonesta, adoptam como prática o recurso ao playback , e raramente as actuações vão além de uma hora; sendo que durante esse espaço de tempo contam três ou quatro anedotas, com o claro propósito de “fazer render o peixe”.
Ainda que a vida, nos tempos que correm, não se afigura nada fácil, e porque também sou adepto incondicional das festas veraneantes, jamais defenderia uma posição próxima da austeridade. As festas têm, a par do indiscutível cariz religioso – ainda que muitas vezes subvertido –, uma profunda dimensão cultural e social: elas são, por excelência, um motivo de reencontro de familiares e amigos; lugares de convívio e confraternização. No entanto, sou da opinião que o povo, porque é dele que vêm os grandes exemplos, os bons ensinamentos, devia fazer um esforço para perceber que se pode e deve encontrar na simplicidade e na modéstia o verdadeiro espírito festivo. Ora, o conjunto do Franklim, do Filipe Lobo e os demais agrupamentos musicais da região (a maioria de grande qualidade, com a particularidade de tocarem a noite toda, e a vantagem de quem os contrata não ter de se sujeitar aos caprichos e exigências extravagantes dos cantantes da moda) são suficientes para o recriar.
Em relação às Festas de Bragança, não me posso pronunciar com propriedade sobre o aspecto da opulência ou não no espírito das mesmas, porque regressei de férias quando elas estavam quase no fim, pelo que me passaram praticamente ao lado. Poderei, contudo, tecer algum comentário acerca da polémica suscitada em torno do local onde elas decorreram. Em detrimento do centro da cidade, os espectáculos musicais e restante animação que fazia parte do programa das festividades têm sido, na última meia dúzia de anos, à excepção de um ou outro, realizados no Parque Eixo Atlântico, argumentando quem determina que assim seja que a zona histórica não tem condições físicas para acolher as centenas de pessoas que, por essa ocasião, aí se concentram.
Engana-se quem pensa que há mais gente agora nas festas da cidade do que havia há vinte anos atrás. A cidade triplicou, é um facto. Mas as pessoas que durante estas duas /três décadas fixaram residência em Bragança, povoando os novos bairros da periferia, quase exclusivamente oriundas das aldeias do concelho e do distrito, antes dessa deslocação definitiva já marcavam presença nas festividades da capital, cujo palco era, invariavelmente, a Praça da Sé, a Praça Cavaleiro Ferreira, a rua Almirante Reis e toda a avenida João da Cruz.
Provavelmente, num assomo de consciência e lucidez, a Câmara Municipal de Bragança, na pessoa da vereadora da cultura, Dra. Fátima Fernandes, considerou, em recente entrevista a este jornal, a hipótese de, na próxima edição, as festas regressarem ao local de origem.
A abertura ao diálogo é um sinal de inteligência. Não queiram, por isso, a bem da tradição e da memória colectiva, e porque foram gastos milhões de euros para revitalizar a zona histórica, perder a oportunidade de serem considerados como tal.